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segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

O futuro, a tecnologia e o inconcebível


    Nas rodas de conversa entre amigos, sempre me entusiasmo imensamente com o futuro — e não posso deixar de sentir uma certa frustração ao constatar que este entusiasmo é pouco partilhado por eles. Sinto que, no geral, as pessoas não costumam realmente pensar sobre o que está por vir em termos tecnológicos; se o fazem, é quase sempre com uma animação morna, quase desinteressada, quando não sob uma perspectiva pessimista e temerosa. Não digo que não há o que temer, pois nem mesmo o mais ingênuo dos otimismos poderia desqualificar as críticas mais que válidas feitas por séries grandiosas, como Black Mirror, por exemplo; digo apenas o evidente: o futuro tecnológico não nos reserva apenas desgraças. Apesar de a tecnologia ter, eventualmente, finalidades sombrias, a tendência mais inevitável é a de que ela sirva, em maior parte, aos interesses imediatos da humanidade, em termos de acesso, comunicação, transporte ou o que seja — e se isso significa transfigurar as relações humanas, esta é uma questão posterior que não apaga as significativas benesses da vida moderna.
    O que mais me cativa é olhar para a história e perceber, por meio dela, como nossa visão sobre o futuro é terrivelmente limitada. Chega a ser fascinante pensar que, há trinta anos, sequer fazíamos ideia do que viria a surgir, como o que chamamos hoje de internet. Não só era algo imprevisível, como literalmente inacreditável: se voltássemos no tempo e contássemos às pessoas que seria possível a basicamente qualquer um comunicar-se com alguém do outro lado do mundo instantaneamente, não apenas por texto, mas por voz e imagem, isto seria com toda certeza mais fantasioso que falar sobre carros voadores. Apesar de estes últimos estarem muito além da capacidade técnica da época (como continua estando até hoje, eu diria), é algo absolutamente concebível, pois não quebra paradigmas; a internet, por outro lado, supera um obstáculo até então incontornável: a distância. Foi só achando outras formas de transmitir uma mensagem — que não pelo envio convencional, adstrito às rigorosas limitações da física mecânica tradicional — que criamos um novo paradigma; e se enxergamos hoje a internet como algo banal, tão maior se mostra o poder desta revolução tecnológica.
    Embora o desenrolar destas novas tecnologias seja monumental, o que é ilustrado quase ironicamente por infantos que sabem lidar com tablets mas não com revistas, o ponto nevrálgico do que quero aqui passar não é este, e sim o próprio fato de que todos os limites que nossa imaginação encontra hoje estão sujeitos a superações que fogem ao nosso paradigma atual. Talvez esta constatação seja um tanto óbvia a quem já está familiarizado com o debate científico, mas insisto em sua importância: é fundamental que jamais descartemos possibilidades de inovações tecnológicas só por parecerem ousadas ou inviáveis demais.
    Dentre as previsões que ouso fazer, estão as que lidam diretamente com a exploração e a materialização de nossas subjetividades. Gosto de pensar que, daqui a não muito tempo, será praticamente impensável que não éramos antes capazes de projetar nossa própria imaginação na realidade. Um passo nesta direção já foi dado: os óculos de realidade virtual, que hoje ainda engatinham, com um tímido espaço no mercado, decerto são uma poderosa promessa para o entretenimento futurista: em pouco tempo, dificilmente haverá jogos e filmes que não sejam totalmente tridimensionais. Arrisco que, aos olhos do amanhã, um filme 2D será equivalente ao que os filmes em preto e branco nos é hoje. Este tipo de atividade imaginativa é quase um exercício antropológico de estranhamento intertemporal.
    O futuro nos reserva, sim, o sobre-humano. Muitas das nossas limitações mais intransponíveis serão contornadas por paradigmas que, por enquanto, fogem à nossa compreensão. Só nos resta sorrir, imaginar e, por último, esperar.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

O artista à sombra do anonimato


    Escrever exige postura. Parte da aura mágica da leitura tem como ingrediente a imagem que o leitor possui do autor, e embora seja possível e até desejável que esta imagem se molde à luz do texto, parece-me que é muito mais frequente o contrário. É evidente que a arte jamais é dissociada de sujeitos, mas é profundamente preocupante perceber que por vezes estes são até mais importantes que suas criações em si — um quadro branco com um respingo de tinta só vale milhões se tiver sido produzido pela pessoa certa. E que fazer dos que não têm renome? Dos que se devotam com sinceridade às suas artes mais íntimas, e sobre os quais jamais pousam os holofotes do reconhecimento porque a humanidade não parece estar interessada em dar fama aos ignorados, aos de passado e futuro relegados ao desconhecimento?
    Não que dinheiro realmente avalie alguma coisa, ou tampouco a atenção massiva das multidões sedadas, porém, se por um lado esta liberdade anônima liberta, ela também nos acorrenta à nossa própria solidão. É por gritarem e não serem ouvidos que muitos desistem de gritar, ou mesmo passam a desacreditar nas próprias denúncias. Entristece-me ver a ode cega a clássicos de outras épocas, exaltações absolutas a obras e gostos importados, enquanto ignoramos as súplicas existenciais de nossos próprios vizinhos, que clamam, sentem e retratam nossa própria realidade. O que me incomoda não é que haja clássicos, mas que eles detenham uma exclusividade asfixiante que nos aliena de nosso próprio mundo. Estou farto de neve, de romances mediterrâneos, de conflitos medievais. Quero ver a nós mesmos, plenos em nossa história e cotidiano; e sei que estamos ali, em algum lugar! Em produções artísticas domésticas, viscerais e sublimes que se escondem debaixo de nossos olhos, invisibilizados pela desatenção mórbida.
    Quantos artistas grandiosos não morrem na surdina, longe da atenção pública? Quantos Machados e quantas Clarices não enterramos sem ao menos saber? Trata-se não apenas de representatividade, mas sobretudo de oportunidade; de dar voz aos vencidos, a quem vive o aqui e agora. Eu quero encontrar os Dostoiévskis tupiniquins e escutar o que eles têm a dizer. E você?

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Como ter sonhos lúcidos


    Você certamente já deve ter ouvido falar dos sonhos lúcidos; porém, apesar de serem amplamente difundidos, é comum que haja uma certa confusão quanto ao que os define exatamente, ou mesmo quanto aos métodos para atingi-los. Venho, então, compartilhar minha experiência e dar minha singela contribuição à disseminação deste glitch da mente humana, que, na mais tímida das hipóteses, é um grande passo em direção ao autoconhecimento.
    Embora existam outros elementos que possam caracterizar os sonhos lúcidos, como a habilidade de controlar a realidade onírica a seu bel prazer, estas são decorrências posteriores que podem ou não estar presentes, e que, por si só, não definem nada. Um sonho só é lúcido, como o próprio nome já sugere, quando você, dentro dele, sabe que está sonhando. A quase-totalidade das técnicas que me permitiram ter sonhos lúcidos com frequência diz respeito a, justamente, identificar que se está num sonho. A partir daí, é só uma questão de testar as possibilidades de seu próprio universo interno.
    Como sei que estou sonhando? Bem, após alguns anos de varreduras em fóruns da internet, descobri e testei muitas formas; todas elas se baseiam em falhas de realidade, já que a "física dos sonhos" possui alguns defeitos que parecem se aplicar a praticamente todas as pessoas. Trago aqui as principais:

    1. Mãos
    Este é o mais útil e mais confiável sintoma onírico. Nos sonhos, suas mãos jamais são idênticas às da realidade. Suas características variam de sonho para sonho, sendo uma mais bizarra que a outra. Comigo, é muito comum que eu tenha mais de sete dedos em cada mão, ou apenas três; por vezes, os dedos são desproporcionalmente finos e longos; e, num sonho muito específico, cada dedo apresentava outras cinco ramificações, como uma mão elevada ao quadrado.

    2. Espelhos
    Se algum dia você se olhar no espelho e ver-se a si próprio deformado, como uma anomalia monstruosa que só com alguma dificuldade lembra um ser humano, não se assuste: você está sonhando! Dentro dos sonhos, os reflexos dificilmente conseguem reproduzir a realidade com sucesso.

    3. Relógios
    Sejam analógicos ou digitais, os relógios nos sonhos são totalmente malucos. Assim como as mãos, seus ponteiros ou números apresentam características muito voláteis e imprevisíveis, podendo rodopiar, contorcer, piscar, desaparecer ou mesmo indicar horas absolutamente improváveis.

    4. Céu
    Este é um indicativo um pouco controverso, pois parece funcionar com uma quantia um pouco menor de pessoas. No entanto, eu próprio já olhei para o céu dentro dos meus sonhos e me surpreendi ao ver auroras boreais de todas as cores, fumaças inusitadas, e, certa vez, até mesmo pisca-piscas de Natal.

    A recomendação oficial da maior parte dos estudiosos da onirologia é a de que, para garantir sonhos lúcidos frequentes, é preciso antes fortalecer a memória temporária dos sonhos, uma vez que eles tendem a dissolver-se em poucos minutos após acordarmos. Isso explica por que boa parte das pessoas acha que não sonha — na verdade sonha, mas não tem memória alguma. A dica, então, é anotar num caderninho de cabeceira, logo que acordar, o que você sonhou. Não é estritamente necessário: eu mesmo nunca o fiz, tanto por achar inviável, quanto por não precisar; mas definitivamente ajuda.
    Quanto aos indicativos, é claro que só conhecê-los não basta; é preciso checá-los com uma certa regularidade. Existem muitos tutorais por aí que ensinam a criar um impulso automático de olhar para as próprias mãos várias vezes por dia, mas não sou muito afeito a este tipo de condicionamento forçado e artificial. A dica que eu dou, e que funciona para mim, é checar as próprias mãos sempre que algo estranho na realidade acontecer (porque os sonhos costumam ser bem ilógicos, ainda que de modo sutil), de forma que, eventualmente, a própria curiosidade de saber se você realmente está acordado te motivará a realizar o reality check.
    No entanto, é particularmente importante a parte em que eu disse que é preciso "testar as possibilidades", pois nem tudo é possível. Tomar consciência de que se está sonhando, apesar de ser o mais importante passo, nem sempre é suficiente; leva certo tempo até que se aprenda a controlar o sonho. Voar, por exemplo, talvez seja a primeira coisa que todos tentem fazer ao se darem conta do poder que têm em mãos, mas é algo um tanto difícil; eu mesmo nunca consegui, pelo menos não sem cair e acordar. A já mencionada "física dos sonhos" funciona de uma forma deveras misteriosa. Existem técnicas para esse tipo de coisa, mas são muito mais pessoais do que universais. Um ótimo conselho que li uma vez, e que me surpreendeu ao funcionar, é o que me ensinou a fazer pessoas aparecerem. Apenas imaginá-las não basta — mesmo porque, na realidade, ninguém simplesmente surge, de repente. Neste caso, o que funciona é imaginar que elas estejam atrás de uma alguma porta que esteja à vista e então abri-la: a expectativa costuma se concretizar, e lá está a pessoa. Ou não; por vezes, percebemos como nossa mente é travessa e foge ao nosso próprio controle.
    Para todos os efeitos, a experiência de ter um sonho lúcido é fascinante. Digo sem medo que todo ser humano* deveria ser capaz de explorar seus sonhos; de certo modo, não deixa de ser um simulador natural da própria realidade que vivemos, com um potencial enorme para testar novas ideias, enfrentar nossos maiores medos e observar a força e a sutileza do nosso próprio inconsciente. Mês passado, por exemplo, decidi, dentro do sonho lúcido, analisar de perto os detalhes dos objetos, para ver se os "gráficos" da minha mente eram tão bons quanto os da realidade. Olhando uma maçaneta a poucos centímetros de distância, fiquei assustado com o quão detalhada ela era, como se tivesse sido esculpida em alta definição pela minha imaginação involuntária. E, já no embalo de compartilhar experiências oníricas, foi engraçada certa vez em que, conversando com minhas amigas, e tendo uma consciência súbita de que eu estava sonhando, retruquei com elas quando disseram que iam dormir: "Não vão não. O sonho é meu e vocês são meras NPCs, frutos da minha imaginação. Não vão me deixar falando sozinho." Elas aceitaram.
    E para os que, como eu, têm sono leve, também existem formas de tentar prender-se ao sonho quando sentir aquela familiar sensação de estar acordando. Costumo usar duas técnicas, e, por mais ridículas que possam parecer, garanto que funcionam. A primeira é esfregar as próprias mãos; já a segunda, dar voltas em torno de si mesmo. Isso costuma concentrar a atenção no âmbito interno do sonho, não deixando que barulhos da realidade externa te arranquem de lá. Ah, e aqui vai outra dica importante! Evite lugares escuros. Pelo menos até onde pude constatar, são áreas não geradas pela mente; cair neste vácuo muito provavelmente vai te fazer acordar.
    Torço muito para que, com isso tudo, eu consiga ajudar os leitores a também terem essa experiência maravilhosa. Mesmo que pareça (e, de fato, seja) difícil no começo, reforço que é completamente possível eventualmente ter mais e mais sonhos lúcidos, não só por meio do acaso, mas também e sobretudo por reiteradas tentativas. Sou a prova viva disso: após cerca de dois anos de prática, consigo ter de três a oito sonhos lúcidos por mês. Mentalizar, antes de dormir, a si mesmo acordando dentro dos sonhos, por exemplo, costuma ajudar consideravelmente. Da próxima vez que for se deitar, lembre-se: uma viagem para dentro de si mesmo pode estar te esperando, com possibilidades lindas e inesgotáveis. Aliás, como sabe que não está sonhando neste exato momento?

*Após postar o texto, fui informado por alguns amigos que os sonhos lúcidos podem ser particularmente aterrorizantes para quem possui Síndrome do Pânico, bem como para quem tem propensão a ter Paralisia do Sono.
Ficam aí importantes advertências.

sábado, 29 de outubro de 2016

Criar é preciso


    Arte, sensibilidade e percepção são conceitos indissociáveis. Quando digo que a escrita mudou minha vida, falo não apenas em sentido poético, mas concreto: nunca mais vi o mundo com os mesmos olhos. É um constante exercício de sensibilidade, que se apresenta para o ato da escrita tanto como requisito quanto como consequência. Isso significa dizer que a sensibilidade é exigida pelo exercício artístico assim como a tinta o é pela pintura, com a única diferença que, em vez de exaurir-se, fica ainda mais vigorosa, contaminando o cotidiano de quem se aventura por seus meandros. A percepção de quem dá vida às — e por meio das — palavras é refinada pela própria forma especial e particular de enxergar o mundo, ganhando proporções sutis e poderosas.
    O mesmo vale para todas as demais artes criativas, que, cada uma à sua maneira, transformam e são transformadas por seus criadores. É por isso que, numa dessas tantas noites frias, quando um sábio amigo questionou se fui eu que criei minha história ou se foi ela quem me criou, eu não soube responder. Criador e criatura são um só.
    Um desenhista transpassa para o papel seus próprios contornos de mundo e, na mesma medida, estes contornos conduzem sua forma de ver a vida. Diante de uma mesma região montanhosa, um fotógrafo vê uma paisagem e um arquiteto vê outra. A Lua é uma só, mas os luares vistos por um astrônomo e por um músico são absolutamente distintos.
    A arte é, assim, dúplice: nos permite mudar o mundo na mesma medida em que nos muda. É nesta bivalência que reside seu poder transformador. A arte é um sopro de vida, um firme empenho em lutar contra as verdades prontas, contra as existências rígidas, contra o "viver no modo automático". As realidades são inesgotáveis, plurais, sublimes; as possibilidades, insondáveis. Criar significa explorá-las e, em última instância, descobrir a nós mesmos.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Rótulos e estigmas


    Uma das mais ingênuas e equivocadas tendências intelectuais da pós-modernidade é a de rejeitar rótulos prontamente. Até certo ponto, faz um certo sentido: essa recusa automática é resultado da desilusão (epistemológica, talvez) gerada pela percepção de certos poderes que permeiam os discursos, comprometendo por completo sua objetividade. É algo com o qual temos um contato mais intenso na faculdade — ao menos nos cursos de humanas, nos quais o paradigma foucaltiano já ultrapassou o positivista, embora infelizmente ainda não tenha chegado ao habermasiano. Esta presunção de subjetividade contaminante foi tão importante nas ciências humanas que é hoje quase onipresente, atravessando os ambientes de pesquisa acadêmica para se apresentar até mesmo como premissa básica de qualquer discussão cotidiana.
    Quando faço, com este texto, uma crítica à necessidade que as pessoas encontram de repelir instantaneamente os rótulos, é claro que não proponho sairmos da ponta de um extremo para irmos a outra. Aliás, nunca propus e provavelmente jamais irei propor algo desse teor, tanto por não acreditar em solução alguma que não tenha compromisso com o equilíbrio, quanto por enxergar nas ideias drásticas uma grande asneira passional. Seria uma enorme tolice abandonar o ceticismo estéril do pós-modernismo para voltar ao delírio positivista que acredita piamente em discursos despidos por inteiro de subjetividade; isso significaria não só uma insensatez quase religiosa, como também falta de estudar história.
    Entretanto, desacreditar no ideal positivista não me impede de apontar os vícios lógicos de seu contraponto. O impulso pós-moderno mencionado, é, como já dito, ingênuo, pois está certamente revestido de boas intenções, mas profundamente equivocado, por tratar como uma só coisa a classificação e o estigma por ela carregado. Ilustro com um exemplo concreto. Estes dias corrigi à mesa uma amiga que havia casualmente chamado outra pessoa de "neurótica". Expliquei que aquele comportamento estava mais para "paranoico", e que neurose era outra coisa. No mesmo instante, ela rebateu: "Acho errado ficar classificando as pessoas, taxando elas disso ou daquilo. A ciência já fez muito isso pra exercer controle sobre as pessoas." Se por um lado ela fez uma avaliação histórica muito precisa da psicologia e da psiquiatria enquanto mecanismos de controle social, por outro, escancarou aos quatro ventos que confunde a doença com o hospedeiro. Explico.
    O que minha amiga fez foi reprovar uma classificação patológica com conteúdo rigorosamente correto logo depois de utilizar e achar aceitável uma classificação patológica esvaziada de sentido. Em outras palavras, utilizou em primeiro lugar uma palavra que carregava apenas estigma (isto é, chamou alguém de "neurótico" apenas para lhe atribuir uma característica negativa), mas logo em seguida defendeu a própria hipocrisia condenando o uso de etiquetas psicológicas por estarem carregadas de estigma. É uma inversão que rejeita o rótulo, mas condescende com a estigmatização em sua pureza.
    É importante perceber que este episódio não foi fruto do acaso, uma grande ironia do destino ou coisa que o valha, mas, antes, um sintoma social do que costuma acontecer com as pessoas que incorporam certos preceitos sem digeri-los muito bem. Sabe-se que rótulos são ruins, mas não se questiona por quê. Eis que lhes digo: rótulos podem ser (e comumente são) danosos, mas não necessariamente o são. Muitas vezes, eles prestam uma finalidade com um alto potencial benéfico, se utilizados com cautela e seriedade; é o caso da psicologia, que pode identificar e tratar com maior facilidade e agilidade pessoas com patologias semelhantes. Outras vezes, sua importância está justamente em utilizá-los para subverter seu estigma. É o que acontece com a orientação sexual e o uso social que se dá às suas designações, sejam elas de baixo calão ou não.
    Numa sociedade onde a homofobia está cristalizada nas bases sociais e familiares, a palavra "gay" traz uma grande carga negativa e é usada frequentemente como ofensa. Isso fez com que eu mesmo, na pré-adolescência, tivesse certa resistência ao adotar esta expressão como parte integrante de minha personalidade, pois cometia o mesmo erro de minha amiga: misturava o termo com seu estigma, fundindo-os numa coisa só. Em boa medida, isso também significava dar munição àqueles que utilizavam e ainda utilizam esta palavra como arma. E é por isso que me entristeço quando vejo, hoje, pessoas LGBT com um discurso quase moralizante que vê como solução a condenação completa das classificações: pois elas não percebem que o problema não é inerente aos rótulos, e sim à sua conotação depreciativa. Não percebem que, ao bradar violentamente contra o uso destas palavras, estão admitindo o poder delas sobre nós; um poder que se funda em aceitar implicitamente, por exemplo, que ser gay é algo digno de vergonha, ou que ter comportamentos neuróticos é ser louco.
     É nesse sentido que se faz necessário utilizar sim os rótulos, esvaziando-os de pejoratividade ou mesmo ressignificando-os. Não que isso seja fácil: a primeira alternativa exige um diálogo maduro com a sociedade, utilizando o constrangimento contra aqueles que pretendem constranger, enquanto a segunda opção requer que repensemos e reinventemos a entonação e o contexto aos quais submetemos essas palavras. Como tantas outras coisas nesta vida, apesar de ser uma atitude difícil, é também possível e necessária; quase urgente, eu diria. A primeira vez em que me dei conta disso foi quando ouvi as palavras de uma doce e lúcida senhorinha chamada Gabriela Leite, com quem aprendi que temos que tomar as palavras pelos chifres. Nós devemos ter as rédeas da linguagem, jamais o contrário.

A escrita no limiar da arrogância


    Talvez não pareça, mas sempre escrevo com muita cautela; com tanta cautela, inclusive, que muitas vezes acabo não escrevendo, ou o faço com uma certa covardia que me limita consideravelmente. Comecei este texto com "talvez não pareça" pois sou realmente incapaz de dizer se minha recorrente insegurança transparece nas linhas de meus escritos ou se consigo fingir bem. Aprendi que simular confiança pode ser de grande ajuda, sobretudo para quem engana a si mesmo.
    Por mais grato que eu seja à minha humildade, há momentos em que ela me serve mais como peso que como asas. Existe um gradiente deveras traiçoeiro entre humildade e confiança, sendo muito fácil ser atraído para o extremo de cada um dos polos: a insegurança e a arrogância, respectivamente. E com frequência tenho descoberto que a insegurança é extremamente magnética; requer um grande esforço para nos mantermos a uma distância segura, na qual ela não seja capaz de nos consumir. É em nome deste esforço que tentarei não me preocupar com os leitores que eventualmente apontem o dedo na minha cara e digam: "Quem é você para falar sobre filosofia, psicologia ou mesmo sobre qualquer outro assunto complexo?" — porque, embora eu lhes dê razão em grande parte, sei que este tipo de pensamento nos amordaça. Sei que, por maiores que sejam seus benefícios, a humildade facilmente se transforma na quimera da insegurança e nos devora por um tempo quase perpétuo, pois dificilmente chegará o dia em que, sendo verdadeiramente humildes, nos sentiremos plenamente confortáveis para discorrer sobre o assunto que for.
    Desta forma, peço desculpas antecipadas se em algum momento eu soar insolente. O ideal é que nos mantenhamos no equilíbrio entre a humildade e a confiança, mas até agora não descobri como fazê-lo, a não ser separando-as para cada momento da comunicação: ter humildade ao ouvir, ter confiança ao dizer. Se eventualmente recairmos em algum dos polos, paciência. Tenho concluído que a arrogância, mesmo quando artificial, é por vezes um preço baixo a se pagar pela coragem que a escrita exige; e, de todo modo, preferível à estagnação e ao silêncio.


terça-feira, 27 de setembro de 2016

Axioma


    Dizem que é difícil identificar com precisão quando um vício começa — que só descobrimos quando já é tarde demais. Pois bem, não é o meu caso; sei muito bem as origens do meu. Em verdade, sei tão bem que eu seria capaz de localizar no tempo o episódio exato que lhe deu causa.
     Lá estava eu, ou pelo menos uma versão prematura minha que partilhava o mesmo nome, assistindo a uma aula de matemática na quinta série. Nos últimos cinco minutos de aula, após Dona Graziela já ter gastado quase uma caixinha inteira de giz para explicar números fracionários, ela perguntou, com o tom ritualístico de quem encerra uma matéria: “Alguma dúvida?”.
     Um detalhe que a esta altura se faz importante é que esta era a mesma professora que, no primeiro dia de aula, havia feito um discurso sobre sua total devoção à aprendizagem — devoção da qual derivava o princípio de jamais deixar perguntas sem respostas. Vejam: era um desafio e tanto, embora talvez nem mesmo a própria Dona Graziela soubesse da gravidade que este compromisso implicava; seus poucos anos de experiência provavelmente lhe passaram a impressão de que não seria difícil responder uma pergunta ou outra de proto-humanos cheios até a tampa de desinteresse mórbido; impressão que estaria correta, se não fosse pela minha incômoda existência.
     Mas sim, voltando aos cinco minutos. Levantei a mão.
     “Sim, Daniel? Qual sua dúvida?”
     “Por quê?”
     “Por que o quê?”, me olhou a mulher, confusa.
     Apontei para o último conceito que ela havia riscado no quadro-negro. Ela explicou novamente.
     “Mas por quê?”
     “Está escrito aqui”, disse Dona Graziela, apontando para a parte anterior da lousa, desta vez um pouco impaciente. “Você não prestou atenção na aula?”
     “Prestei sim, professora. Mas essa não foi a minha pergunta. A senhora nos ensinou como chegar até ali, mas não explicou o porquê.”
     Ela abriu a boca duas, três vezes antes de fechá-la em silêncio. Provavelmente desejou não ter repetido a sua máxima “não há pergunta sem resposta” tantas vezes durante as aulas, em tom de quem levanta uma bandeira gloriosa em prol da educação — bandeira que agora ficava, em razão de um moleque impertinente, insustentavelmente mais pesada.
     Faltavam três minutos; ela mesma estava ciente disto, após conferir de forma ansiosa e desesperada o relógio de pulso. Explicou melhor, dissecando os conceitos envolvidos e elucidando regressivamente as etapas de dedução matemática. Ao fim, chegou em alguns axiomas. Eu podia ver no fundo de seus olhos de azeitona preta o que estava pensando: se o pivete perguntasse o porquê dos axiomas, seria sua ruína.
     “Entendeu?”, perguntou, nervosa. Seu tom deixava bem claro que aceitava uma só resposta, quase como se aquela tivesse sido uma pergunta retórica.
     Eu poderia ter continuado a questionar, mas mesmo naquela época eu já era sagaz o suficiente para perceber que eu já tinha obtido o que desejava; já tinha entendido que o meu poder sobre aquela tão exasperada professora se concentrava ali, naquele um minuto de tensão, durante os quais a sala toda olhava atenta para a conversa, esperando, assim como Dona Graziela, que eu dissesse “não” para que pudessem finalmente sair do confinamento.
     E a partir deste dia tomei como razão primeira e transcendental do meu próprio ser provocar, primeiro em minha professora de matemática e depois no restante da humanidade, aquele mesmo sangue nos olhos de quem tem apontadas para sua cara as lâminas afiadas da dúvida. Uma dúvida que, de tão simples e elementar, tinha o poder de despir as pessoas de suas próprias pretensões gnósticas. Questionar significava colocá-las contra a parede usando só a curiosidade e a humilde vontade de entender de onde partiam seus raciocínios. "Por quê?" "Por quê?" "Por quê?"
    O problema é que, por mais nobre que tenha parecido este meu propósito existencial, sou obrigado a reconhecer que isso fugiu do meu controle. Já não sei mais o que estou fazendo com a minha vida. De repente, me vejo marcando consultas e fingindo dores, apenas para ter a prerrogativa de desafiar os pressupostos positivistas de médicos arrogantes. Não consigo me controlar. Semana passada fiz o tio do cachorro-quente chorar por não saber me explicar como são feitas as salsichas e por que levam esse nome. E ainda por cima quebrei todos os espelhos de minha casa com os punhos nus, pois sempre que passava em frente a algum deles, começava a discutir comigo mesmo e a questionar a minha própria realidade. Estou percebendo que talvez entrar para alguma religião seja o único e mais efetivo remédio.
     Ah, sim: Dona Graziela se aposentou logo após terminar o meu ano letivo. Ela tinha vinte e cinco anos. Eu não me surpreenderia se chegasse em mim a notícia de que cometeu suicídio não muito tempo depois. Sinto muito, professora; quem se propôs a explicar o inexplicável foi a senhora mesma. E agora tenho que conviver com este vácuo no peito e na existência, sem saber com que exatamente preencher.

Este texto foi projetado para atender à proposta do exercício textual do Grupo Paulo Leminski (de escrita literária da UFPR), devendo obrigatoriamente conter os temas "sangue nos olhos" e "não sei mais o que estou fazendo com a minha vida".

Mudança


    Se tem uma coisa que aprendi no último ano é que somos feitos de mudanças — mudanças constantes que nos redefinem a todo instante. Lutar contra elas seria fechar os olhos à nossa própria existência; seria permanecer presos a uma ideia artificial de alguém que já fomos. Nunca somos: estamos. Não se trata de negar o passado, mas de ser grato a ele por ter nos trazido até aqui, e seguir em frente.
   Pretendo falar mais sobre isso eventualmente; só não o faço aqui agora pois estou concentrando a maior parte de meus esforços em transpassar esta ideia da identidade fluida como um dos pontos centrais de Cogumelo de Adão, meu segundo livro ainda em processo de escrita, onde tenho muito mais espaço, tempo e profundidade para tratar do assunto. Trago apenas um fragmento deste conceito aqui pois tomo ele como indispensável para explicar meus motivos para ter criado um novo blog.
    Eis que, depois de quase seis anos escrevendo no Meu mundo, minhas palavras, percebi que não me sentia mais confortável em escrever em meu próprio blog. Cheguei, inclusive, a comentar isso num de meus últimos textos, caindo na ilusão de que eu conseguiria romper essas amarras. A causa desse desconforto era bastante intuitiva, de forma que raros serão os leitores a não se identificarem com isso em algum momento da vida: eu simplesmente não sentia que aqueles textos tivessem sido escritos por mim — ou pelo menos não pelo Régis atual, que já não tem mais os mesmos interesses insípidos daquele que escreveu as trinta dissertações. E não se trata nem mesmo de aquelas opiniões todas não me representarem mais em seu conteúdo, e sim em sua forma: com os anos, acabei cristalizando um padrão de textos sérios, de sobriedade nauseante, que de alguma maneira me engessava, impedindo que eu começasse algo novo. Até poderia tentar, como efetivamente o fiz, mas os moldes ainda eram os mesmos.
    Não acho, de modo algum, que os eventuais leitores deste texto tenham qualquer razão para estarem genuinamente interessados nesta crise de identidade textual que me motivou a criar um novo blog, mas certamente acredito que disso seja possível extrair vários assuntos relevantes que sejam de interesse geral. Esta minha decisão revela sobretudo a relação incontestável que a estética mantém com a escrita e, por que não, com o conjunto geral das formas de expressão humanas; e, mais, evidencia a necessidade quase urgente de inovar, de não mais viver nas sombras do passado. Por vezes, é preciso que sejamos honestos conosco mesmos, ainda que isso signifique deixar de lado quem já fomos para ser quem verdadeiramente somos hoje — e só então seremos capazes de encarar o futuro com a sinceridade que ele exige.