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terça-feira, 27 de setembro de 2016

Axioma


    Dizem que é difícil identificar com precisão quando um vício começa — que só descobrimos quando já é tarde demais. Pois bem, não é o meu caso; sei muito bem as origens do meu. Em verdade, sei tão bem que eu seria capaz de localizar no tempo o episódio exato que lhe deu causa.
     Lá estava eu, ou pelo menos uma versão prematura minha que partilhava o mesmo nome, assistindo a uma aula de matemática na quinta série. Nos últimos cinco minutos de aula, após Dona Graziela já ter gastado quase uma caixinha inteira de giz para explicar números fracionários, ela perguntou, com o tom ritualístico de quem encerra uma matéria: “Alguma dúvida?”.
     Um detalhe que a esta altura se faz importante é que esta era a mesma professora que, no primeiro dia de aula, havia feito um discurso sobre sua total devoção à aprendizagem — devoção da qual derivava o princípio de jamais deixar perguntas sem respostas. Vejam: era um desafio e tanto, embora talvez nem mesmo a própria Dona Graziela soubesse da gravidade que este compromisso implicava; seus poucos anos de experiência provavelmente lhe passaram a impressão de que não seria difícil responder uma pergunta ou outra de proto-humanos cheios até a tampa de desinteresse mórbido; impressão que estaria correta, se não fosse pela minha incômoda existência.
     Mas sim, voltando aos cinco minutos. Levantei a mão.
     “Sim, Daniel? Qual sua dúvida?”
     “Por quê?”
     “Por que o quê?”, me olhou a mulher, confusa.
     Apontei para o último conceito que ela havia riscado no quadro-negro. Ela explicou novamente.
     “Mas por quê?”
     “Está escrito aqui”, disse Dona Graziela, apontando para a parte anterior da lousa, desta vez um pouco impaciente. “Você não prestou atenção na aula?”
     “Prestei sim, professora. Mas essa não foi a minha pergunta. A senhora nos ensinou como chegar até ali, mas não explicou o porquê.”
     Ela abriu a boca duas, três vezes antes de fechá-la em silêncio. Provavelmente desejou não ter repetido a sua máxima “não há pergunta sem resposta” tantas vezes durante as aulas, em tom de quem levanta uma bandeira gloriosa em prol da educação — bandeira que agora ficava, em razão de um moleque impertinente, insustentavelmente mais pesada.
     Faltavam três minutos; ela mesma estava ciente disto, após conferir de forma ansiosa e desesperada o relógio de pulso. Explicou melhor, dissecando os conceitos envolvidos e elucidando regressivamente as etapas de dedução matemática. Ao fim, chegou em alguns axiomas. Eu podia ver no fundo de seus olhos de azeitona preta o que estava pensando: se o pivete perguntasse o porquê dos axiomas, seria sua ruína.
     “Entendeu?”, perguntou, nervosa. Seu tom deixava bem claro que aceitava uma só resposta, quase como se aquela tivesse sido uma pergunta retórica.
     Eu poderia ter continuado a questionar, mas mesmo naquela época eu já era sagaz o suficiente para perceber que eu já tinha obtido o que desejava; já tinha entendido que o meu poder sobre aquela tão exasperada professora se concentrava ali, naquele um minuto de tensão, durante os quais a sala toda olhava atenta para a conversa, esperando, assim como Dona Graziela, que eu dissesse “não” para que pudessem finalmente sair do confinamento.
     E a partir deste dia tomei como razão primeira e transcendental do meu próprio ser provocar, primeiro em minha professora de matemática e depois no restante da humanidade, aquele mesmo sangue nos olhos de quem tem apontadas para sua cara as lâminas afiadas da dúvida. Uma dúvida que, de tão simples e elementar, tinha o poder de despir as pessoas de suas próprias pretensões gnósticas. Questionar significava colocá-las contra a parede usando só a curiosidade e a humilde vontade de entender de onde partiam seus raciocínios. "Por quê?" "Por quê?" "Por quê?"
    O problema é que, por mais nobre que tenha parecido este meu propósito existencial, sou obrigado a reconhecer que isso fugiu do meu controle. Já não sei mais o que estou fazendo com a minha vida. De repente, me vejo marcando consultas e fingindo dores, apenas para ter a prerrogativa de desafiar os pressupostos positivistas de médicos arrogantes. Não consigo me controlar. Semana passada fiz o tio do cachorro-quente chorar por não saber me explicar como são feitas as salsichas e por que levam esse nome. E ainda por cima quebrei todos os espelhos de minha casa com os punhos nus, pois sempre que passava em frente a algum deles, começava a discutir comigo mesmo e a questionar a minha própria realidade. Estou percebendo que talvez entrar para alguma religião seja o único e mais efetivo remédio.
     Ah, sim: Dona Graziela se aposentou logo após terminar o meu ano letivo. Ela tinha vinte e cinco anos. Eu não me surpreenderia se chegasse em mim a notícia de que cometeu suicídio não muito tempo depois. Sinto muito, professora; quem se propôs a explicar o inexplicável foi a senhora mesma. E agora tenho que conviver com este vácuo no peito e na existência, sem saber com que exatamente preencher.

Este texto foi projetado para atender à proposta do exercício textual do Grupo Paulo Leminski (de escrita literária da UFPR), devendo obrigatoriamente conter os temas "sangue nos olhos" e "não sei mais o que estou fazendo com a minha vida".