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sábado, 29 de outubro de 2016

Criar é preciso


    Arte, sensibilidade e percepção são conceitos indissociáveis. Quando digo que a escrita mudou minha vida, falo não apenas em sentido poético, mas concreto: nunca mais vi o mundo com os mesmos olhos. É um constante exercício de sensibilidade, que se apresenta para o ato da escrita tanto como requisito quanto como consequência. Isso significa dizer que a sensibilidade é exigida pelo exercício artístico assim como a tinta o é pela pintura, com a única diferença que, em vez de exaurir-se, fica ainda mais vigorosa, contaminando o cotidiano de quem se aventura por seus meandros. A percepção de quem dá vida às — e por meio das — palavras é refinada pela própria forma especial e particular de enxergar o mundo, ganhando proporções sutis e poderosas.
    O mesmo vale para todas as demais artes criativas, que, cada uma à sua maneira, transformam e são transformadas por seus criadores. É por isso que, numa dessas tantas noites frias, quando um sábio amigo questionou se fui eu que criei minha história ou se foi ela quem me criou, eu não soube responder. Criador e criatura são um só.
    Um desenhista transpassa para o papel seus próprios contornos de mundo e, na mesma medida, estes contornos conduzem sua forma de ver a vida. Diante de uma mesma região montanhosa, um fotógrafo vê uma paisagem e um arquiteto vê outra. A Lua é uma só, mas os luares vistos por um astrônomo e por um músico são absolutamente distintos.
    A arte é, assim, dúplice: nos permite mudar o mundo na mesma medida em que nos muda. É nesta bivalência que reside seu poder transformador. A arte é um sopro de vida, um firme empenho em lutar contra as verdades prontas, contra as existências rígidas, contra o "viver no modo automático". As realidades são inesgotáveis, plurais, sublimes; as possibilidades, insondáveis. Criar significa explorá-las e, em última instância, descobrir a nós mesmos.