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domingo, 29 de outubro de 2017

Meu tom de certeza


    Tenho um apego por estar certo. Se estou sendo sincero, devo dizer que isto é algo extremamente evidente que, no entanto, só fui capaz de enxergar após muita autoanálise e muita humildade, como remédios amargos que insisti em tomar por saber que fazem bem. Mas não é algo do tipo “o importante é vencer a discussão”, pois, lembremos, eu me pauto pelo outro, o que significa que para mim é absolutamente impraticável um cenário no qual eu me imponha sobre o meu interlocutor de forma a ser visto como um vilão. É muito mais algo no sentido de “mostrar de maneira didática e simpática ao outro os motivos pelos quais eu acho que tenho razão”.
    O problema é que esses motivos são sempre muito bem fundamentados e articulados — ainda que estejam equivocados ou enviesados, algo inteiramente possível. Tanto é que, quando apresentam algum argumento ou lógica mais contundentes que as minhas, eu não hesito nem por um segundo em ceder, com um ar resignado ou curioso (mas sempre de bom grado), admitindo que a outra pessoa tem razão.
    Ultimamente tenho estado um tanto machucado por ouvir de amigos íntimos, na palavra dos quais eu coloco completa integridade, que eu sou intelectualmente autoritário. Porque eu cedo.
    Eu cedo. Seria profundamente injusto dizer, só por causa do tom seguro e enfático das minhas palavras, que eu não cedo. Se tem uma coisa que eu faço, é ceder — não só quando reconheço que estou errado, o que é muito frequente, mas mesmo em situações em que continuo convencido das minhas razões, mas conformado diante do fato de que a outra pessoa não está disposta a entendê-las antes de contra-argumentá-las.
    Mas eu entendo que esse tom possa inspirar uma arrogância, passando a impressão de que eu parto do pressuposto de que eu estou antecipadamente certo — uma postura que me incomoda e me ofende profundamente quando me deparo com ela em alguma pessoa. Já cheguei a concluir precipitadamente que esta é uma projeção minha, que eu só abomino esse tipo de pessoa porque na realidade é algo que eu tenho em mim e não aceito. E, para dizer bem a verdade, quando penso nesta hipótese projetiva, eu a sinto doer lá no fundo, o que me faz acreditar emocionalmente que ela é verdadeira. Mas, parando para pensar racionalmente, uma grande parte da minha concordância de que eu sou assim é, sem querer, uma forma de eu ceder às pessoas que me dizem isso, validando a sua visão sobre mim e internalizando-a em forma de culpa.
    Não sei se o leitor conseguiu captar o traquejo que estou tentando mostrar que acontece: ao admitir essa culpa para mim, me culpando por algo que racionalmente eu sei que não faz tanto sentido assim, estou fazendo justamente aquilo que me acusam de não ser capaz de fazer: reconhecer a verdade do outro. O que é isso, minha gente? Reconhecer a verdade do outro é tudo o que eu sempre fiz na vida.     É a raiz de toda a minha ansiedade social, de todo o meu sentimento de insuficiência. É um desaforo que verdadeiramente me dói ouvir do outro,que eu sou "intransigente": pois se eu de fato o fosse, isso sequer me doeria.
    O que me vem à cabeça agora é que talvez eu seja, de fato, essa pessoa que me acusam ser, e que na realidade eu só estou me enganando com racionalizações. Esse autoquestionamento permanente, que resiste mesmo apesar de eu ter me convencido racionalmente de que eu não sou essa pessoa que me pintam ser, existe no mais profundo de mim: eu considero tanto a palavra do outro que eu não consigo me descontaminar dela, mesmo após eu tê-la batalhado dentro de mim. O outro sempre causou um estrago em mim; e é por isso que consigo entender que me machuque tanto essa crítica, pois é o outro dizendo que o meu defeito é não ouvi-lo.
    É, aliás, talvez justamente porque atribuo à palavra do outro uma autoridade tão grande que eu tenho esta necessidade de me demonstrar certo — o que é totalmente diferente de ter a necessidade de estar certo, previamente, porque eu não tenho problema nenhum em estar errado, contanto que me convençam articuladamente. O que me ofende nessas pessoas que querem sempre estar certas não é que eu me veja nelas, mas, ao contrário, é me ver diante de um outro que quer impor suas verdades sobre mim mas não está minimamente disposto a ter, como eu tenho, uma permeabilidade às ideias do interlocutor. E me desculpem, amigos, mas se vocês me conhecem minimamente, sabem que eu sou a permeabilidade em pessoa. Eu sou inteiro permeável à subjetividade alheia, e, novamente, esse tem sido o meu maior problema há muito tempo.
    Então, não: eu não aceito que me taxem como autoritário apenas porque meu tom de voz pode soar seguro demais. Porque muito mais autoritários são vocês, com tons passivos e inseguros, e que não se permitem convencer nem mesmo por argumentos muito bem explicados que contrariem as suas crenças confortáveis.
    Não vou dizer que não tenho vieses, que minhas opiniões são sempre desapaixonadas a ponto de não haver resistência alguma a ideias novas, mas eu certamente não sou esse monstro que as suas próprias inseguranças fizeram de mim. Se bem que não os culpo. Também eu sou inseguro e projeto meus próprios demônios nas pessoas. Crio monstros onde não há e os combato a ferro e fogo, odiando aquilo que me machuca. É triste e patético, e quem mais se machuca ao fazer isso somos nós mesmos. Os meus monstros hoje são dois, sobretudo. O nome dela é L., e o dele, R.
    L. é uma menina linda. Num certo sentido, não há meio termo: sua presença causa atração ou repulsão nas pessoas que a cercam. De si exala uma aura de adulta, não só com seus traços maduros mas também com sua expressão, que é toda cheia de um ar de exausta, sem paciência para as pessoas e muito menos para si mesma. Acho que isso dá grande parte do charme (pois o que ela mais tem é charme): essa constante postura de quem está tão cansada da vida que já parou de fazer questão. O ponto é que, olhando-a mais atentamente, num nível um pouco mais profundo do que as pessoas costumam procurar, é muito nítido que essa pose toda é provavelmente uma roupa que ela aprendeu a vestir para não se deixar fragilizar. Essa é a sua forma de não se vulnerabilizar.
    Mas chega uma hora que cansa — e eu diria que cansa imediatamente, assim que se percebe qual é a dela. Quando se percebe que essa indiferença toda, esse sarcasmo pretensamente humilde e esse ar desdenhoso em relação às coisas da vida, às pessoas e a si mesma — quando se percebe que tudo isso não passa de uma fachada, uma defesa que ela está viciada em usar, e sem a qual não consegue se relacionar, a pessoa se cansa. E aí aquela elegância toda, aquele brilho que ainda seduz muitas pessoas, se transforma de repente em algo triste. Uma pessoa que não consegue se demonstrar vulnerável em público, e que, em vez disso, veste uma máscara de quem incondicionalmente sabe o que fala — mesmo quando, na maior parte dos momentos, esteja falando coisas das quais não tem a menor propriedade. Sua situação passa de triste, então, para um tanto nociva.
    Acho que, sob um certo ângulo, a forma de L. lidar com as discordâncias é quase oposta à minha. Como conversar com alguém que possui o tempo todo um tom de voz desapegado e cético (no sentido da desesperança, do pessimismo como pressuposto), e que, no entanto, jamais cede? Pois justamente por sentir que não domina o assunto, veste uma carcaça de quem domina, e se deixa embrenhar nessa apresentação confusa de segurança e insegurança excessivas na voz.
    Quanto ao R., minha repulsa é ainda maior. Pois a sua gana por estar certo não é triste, mas irritante — no máximo que alguém consegue ser. A questão é que ele, ao contrário de L., domina até excessivamente o que está falando, e tem argumentos bastante lógicos e articulados. O que me irrita e me ofende profundamente é que a sua vontade de se demonstrar correto é tão sedenta e tão voraz que ela me atropela. R. também não cede, mas porque usa da solidez de seus argumentos para não precisar escutar o que o outro tem a dizer. Se escuta, parece ser sempre com o objetivo primordial de desmontar o argumento do outro de uma maneira complexa e intelectual, ou, no mínimo, compatibilizá-lo ao seu.
    Eu, que só o conhecia virtualmente, era um grande fã. Até que tentei conversar com ele pessoalmente, ouvindo suas opiniões complexas e dialogando com elas — foi então que percebi que seus olhos divagavam e sua mente fugia do ambiente quando era o momento de tentar assimilar os meus argumentos. E naquele momento eu me senti profundamente invisível, como se o único papel possível que eu poderia ter para ele era o de ceder à erudição e exatidão de seus argumentos, sem intervir com a minha própria subjetividade.
    E o interessante é que, pelo que conversei com outras pessoas que o conhecem, embora ele tenha uma reputação um tanto manchada por ser uma pessoa que problematiza demais as coisas, e com uma dedicação combativa intensa demais, chegando a parecer talvez até um pouco rancorosa, poucos são aqueles que se incomodam e que sequer notam esta sua tendência a não ouvir. E eu consigo entender o porquê. A forma didática como se comunica passa a impressão — não por coincidência — de que ele está ouvindo seu interlocutor, quando na realidade tudo o que faz é utilizar o discurso que chega até ele como uma ponte para a construção do seu próprio. Ele não está minimamente disposto a ceder.
    O único lado bom deste incômodo que R. me causa tão ferozmente é ter me feito descobrir que me é extremamente doloroso ser contrariado por pessoas que não estão abertas ao que eu tenho a dizer. Eu me sinto invalidado. Mais do que isso, até: anulado. Porque, repetindo pela trigésima vez, eu infelizmente aprendi a me ver por meio dos olhos do outro. E isso é algo que eu tenho trabalhado muito em análise.
    Ainda preciso descobrir até que ponto esta minha aversão a essas duas pessoas é fruto das minhas inseguranças e projeções, e até que ponto eles de fato têm posturas tão tóxicas quanto me parecem ter. O fato de eu estar usando apenas suas iniciais me alivia bastante, pois me deixa totalmente confortável para não me censurar em nome da privacidade psicológica alheia. O que me deixa entusiasmado é imaginar se o leitor que é amigo deles será capaz de identificá-los mesmo sem eu ter escrito seus nomes, o que significaria não apenas uma precisão descritiva minha, mas também uma certa acurácia em sua toxidade. Ou, melhor ainda, se eles próprios estiverem lendo isso, e diante da identificação com o descrito, serem obrigados a se deparar com o fato de que "a carapuça serviu".


Este texto pertence ao livro Calma Tormenta.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Contínuo adulto


    Numa revista sobre Lacan, encontrei uma série de insights sobre a escrita:

“Naturalmente, a literatura não é uma graça; é o corpo dos projetos e das decisões que levam um homem a se realizar (isto é, de certo modo, a esse essencializar) somente na palavra: é escritor aquele que quer ser.”
(Roland Barthes)
“Escrever é entregar-se ao fascínio da ausência de tempo. Neste ponto, estamos abordando, sem dúvida, a essência da solidão.”
(Maurice Blanchot)
“Ao comparar o ato de escrever à Psicanálise, estou implicitamente afirmando que para um indivíduo encontrar sua voz própria como escritor, em determinados aspectos, é como o caprichoso processo de se tornar adulto.”
(Alfred Alvarez)

    Algo na riqueza dessas palavras me deu uma certa revigorada na paixão pela escrita. É que, para variar, nos últimos dias estive numa daquelas recaídas nas quais não me sinto minimamente forte para escrever. Antes eu era ingênuo a ponto de achar que essas recaídas logo sumiriam, mas estou começando a acreditar, agora, que viver é isso mesmo: lutar, entre recaídas, para aceitar e entender a si mesmo. Mas é muito difícil, porque o nosso primeiro instinto diante das recaídas é entrar nesse ciclo vicioso de culpa, frustração e fuga. Pelo menos é o que faço na maior parte do tempo.
    Falo sobre a escrita, mas isso vale também para outras atividades básicas, como estudar. Não consigo estudar porque procrastino, e procrastino porque não consigo estudar. No fundo, o que gera essa minha fuga e é por ela gerada é o clássico sentimento de insuficiência, velho amigo de todos nós. E ele vem de diversas formas, entre elas a campeã: a preguiça. Tenho preguiça porque no fundo não me sinto capaz.
    Mas quando me ponho a fazer tal ato, e percebo então que isso tudo é bobeira, estratégias involuntárias de autossabotagem, e me vejo efetivando aquilo que eu precisava realizar, me vem uma ansiedade, que não deixa de ser uma outra carapuça que a insuficiência veste. E na maior parte das vezes não vejo isso acontecendo; apenas acontece.
    Hoje, enquanto caminhava na chuva com um guarda-chuva semiquebrado e pensava nas minhas questões, cheguei a uma frase que me surpreendeu, tamanha é a sua veracidade e beleza. Sinto que precisamos sempre nos reconquistar, pois as nossas neuroses e paranoias não cansam de nos furtar — da realidade, das pessoas que amamos e sobretudo de nós mesmos. Preciso me reconquistar, continuamente. Esse movimento não tem fim.
    Ser verdadeiramente adulto — no sentido de olhar para a própria vida como se ela fosse inteiramente sua, o que significa, em última instância, não sentir a necessidade de prestar contas a ninguém — não é algo que se adquire uma vez “e pronto”, mas algo que precisamos sempre estar praticando. E escrever é isso: é vestir essa toga de juiz da própria verdade, de dono da própria palavra, e expressar sua própria sinceridade com a tranquilidade e firmeza de quem não deve nada a ninguém. Esqueçam as aulas de redação: não dá para escrever de verdade se ainda tiver na boca e no coração as mordaças do medo e da insegurança de si. É como eu sempre digo, e como sempre preciso reafirmar a mim mesmo: escrever é um ato de coragem.
    Hoje me ensinei uma grande lição, que talvez a algumas pessoas pareça óbvia, mas que é muito difícil de assimilar por completo: a vida é um processo contínuo. Nunca estamos livres do dever de amadurecer. Entregar-se às próprias feridas não é o caminho. Somos grandes, se nos permitirmos sê-lo. É só ter a coragem de encarar a própria dor, aceitá-la e superá-la — um pouco por dia.
    Há quem se incomode quando os meus textos terminam com um tom de autoajuda. Consigo entender essas pessoas: verbos em primeira pessoa, no plural, com conteúdo altamente motivacional, decerto parecem ser, a um primeiro momento, a fórmula gramatical da autoajuda. Mas se você tem uma dignidade estética tão frágil ao ponto de ofuscar o conteúdo que quero dizer, apenas pela forma, meu sincero foda-se. Esta é outra coisa que (re)descobri hoje: o que eu quero com a escrita é justamente nomear as coisas mais belas e verdadeiras do nosso cotidiano, que na maior parte das vezes passam despercebidas, e, com isso, causar nas pessoas o que estas coisas causam em mim. Se eu conseguir fazer isso, estarei mais do que realizado. Esta é uma das formas de me reconquistar diariamente.


Este texto pertence ao livro Calma Tormenta.

sábado, 9 de setembro de 2017

Rejeição


    Por que rejeição dói tanto?
    Por que é que as rejeições do passado insistem em se projetar constante e inconscientemente no presente, sepultando muitos futuros possíveis em nome do medo? Por que é que ela se transveste de culpa, de ansiedade, de ódio, de preguiça, de desinteresse, e até mesmo de procrastinação de maneira tão convincente que nós mesmos dificilmente somos capazes de enxergar que, na verdade, estamos apavorados pela mera possibilidade de sermos rejeitados novamente?
    Nos culpamos por coisas que nunca estiveram ao nosso controle.
    Deixamos que a ansiedade nos faça perder a cabeça por problemas que não existem.
    Canalizamos nosso ódio a um inimigo construído e descontamos nele todas as nossas cóleras que seriam, na verdade, contra os que amamos e contra nós mesmos.
    Temos preguiça porque o desamparo prévio nos sequestra qualquer motivação.
    Somos desinteressados como que por vingança, ou, ainda mais provavelmente, por receio de nos machucar novamente. Talvez nos fechemos tanto às pessoas justamente por pressupor, em algum lugar de nós, que elas também estarão fechadas a nós.
    E procrastinamos tanto porque, como é de conhecimento geral, é mais fácil deixar para o amanhã as coisas que não queremos enfrentar hoje; um amanhã eterno que será sempre a fuga daqueles que não conseguem fugir de si mesmos.
    Eu não sei. Parece um quadro pessimista. Mas peço que o leitor que tenha se identificado com esse texto, e que, justamente por isso, tomou-o quase como uma adaga gelada enfincada na espinha, não se desanime. Pelo contrário: só o fato de conseguirmos visualizar o que diabos está acontecendo dentro de nós já garante que estamos no caminho.
    Acho que o próximo passo é parar de lutar contra e, em vez disso, tentar aceitar a nossa condição falha — e, portanto, humana — de quem tem feridas e está disposto a permitir gentilmente que elas se cicatrizem. Elas irão se cicatrizar porque esse é o rumo natural das coisas; não porque temos de fazê-las desparecer, e muito menos para satisfazer expectativas que colocamos a nós mesmos sob tanta pressão. Sem pressa, sem afobação. Se permita sofrer, e, então, se permita ser. Eu vou tentar fazer isso; aviso quando der certo.


Este texto pertence ao livro Calma Tormenta.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Signos: utilizar, sem acreditar


   Em relação aos signos do zodíaco, tive três fases em minha vida. Quando criança, tive a fase mágica: acreditava nos signos como quem tenta conhecer os mistérios do místico, sentindo-os na pele. Na adolescência tardia, sob o paradigma estritamente científico, deixei de considerá-los minimamente aceitáveis. Agora, tendo criado o costume de refletir a fundo sobre questões abstratas, entrei na fase cético-simbólica. Explico.
    Costumo incomodar tanto quem crê em signos, quanto quem acha tudo uma grande baboseira esotérica. É que eu continuo com o meu ceticismo científico, sem no entanto aplicá-lo com rigor nas futilidades do cotidiano, nas brincadeiras sociais, especialmente se consigo extrair delas algum sentido, ainda que este seja não real, mas simbólico.
    Qualquer um que tenha um mínimo de seriedade metodológica não acredita realmente que a posição dos astros, a depender do dia em que você foi parido, tem qualquer impacto significativo na sua personalidade. Epistemologicamente isto é indefensável. Em termos mais simples, pensando-se em como o homem obtém conhecimento concreto e objetivo sobre o universo, e tendo uma educação científica verdadeira, isto é, possuindo uma noção sólida de como (e por que) se faz ciência, não é minimamente plausível crer que posições de massas condensadas no espaço sideral possam influenciar aspectos psicológicos de um ser humano. Isso fica particularmente evidente, para não dizer óbvio, quando se compreende o mundo por lentes existencialistas.
    É claro que você tem o direito de ter um paradigma místico e desconsiderar a ciência como único método de obtenção de conhecimento objetivo* sólido, mas isso significa admitir que você não entendeu o que faz de uma ciência, ciência. A ciência não tem o privilégio da credibilidade apenas por mera convenção; é claro que o tem por convenção, uma convenção assentada na lógica ocidental e positivista, mas há um motivo muito claro para esta confiabilidade. A ciência não é confiável porque "os cientistas disseram", mas por princípios estruturais de autorefutamento e de método rígido que agem a partir da ignorância, admitindo-a e trabalhando em cima dela, em rumo ao aperfeiçoamento contínuo. As pseudociências querem usufruir da mesma credibilidade, mas justificam a ignorância com a própria ignorância (fazendo uso da falácia do apelo à ignorância), e blindam suas premissas com fortes raciocínios circulares.
    "Para julgar a astrologia, é preciso primeiro estar a par dos estudos astrológicos profundos e atualizados." Não, não é preciso. Não importa o quão complexa e elaborada a astrologia é internamente se (1) as premissas não se sustentam epistemologicamente, e se (2) seus resultados são comprovadamente uma ilusão causada por muitos de nossos vieses cognitivos, sobretudo o viés da confirmação. Como explica o canal Nerdologia num vídeo muito completo de cinco minutos, a astrologia (A) costuma ignorar importantes descobertas astronômicas (como a precessão dos equinócios, ou os novos planetas e constelações descobertos nos últimos séculos), o que demonstra o descaso com uma metodologia comprometida com a superação das antigas verdades; e (B) foi demonstrada totalmente falível nos testes duplo-cego, como no famoso experimento de Shawn Carlson, publicado na Nature: quando se retira a intervenção subjetiva, a efetividade estatística dos signos se reduz a chances aleatórias.
    Bem, agora que a esquerda universitária pós-moderna está em total fúria, chegou a hora de desagradar as pessoas com um senso científico tão pretensioso e orgulhoso que quase se ofendem quando alguém fala em signos. Fiquem vocês irritadiços ou não, o fato é que os signos astrológicos, enquanto um sistema simbólico, servem para falar de coisas reais. Embora os signos em si não sejam reais, muitas vezes eles prestam um papel representativo a certos esteriótipos multifacetados com os quais nos identificamos (ou não), permitindo que conversemos sobre questões extremamente verdadeiras sobre nossa estrutura emocional, a qual seria difícil abordar de maneira tão fácil e lúdica.
    Imagino que visualizar a simbologia envolvida em certos processos é bastante difícil para pessoas que ainda estão submersas no paradigma da consciência, segundo o qual as coisas ou são, ou não são, objetivamente, e fim de papo; no entanto, uma vez que obtêm alguma familiaridade com o paradigma da linguagem, que mostra que a relação entre o sujeito e o mundo é construída e mediada por significações,1 compreendendo que a realidade percebida é constituída subjetivamente pelas experiências do sujeito, passa-se a saber valorizar os aspectos simbólicos e imaginários que dão sentido à vida das pessoas, e que, em última instância, revelam e interagem com aspectos reais.
    Vou criar um exemplo banal para ilustrar o que estou querendo dizer. João tem seu sol em Leão, seu ascendente em Capricórnio e sua lua em Sagitário. Quando vai ler a respeito, descobre que, segundo a astrologia, isso significa que ele é vaidoso em seu íntimo, e se possui uma autoestima tão baixa, é justamente por ser muito preocupado com a sua autoimagem. Contudo, tendo Capricórnio como ascendente, João age, externamente, como uma pessoa pé no chão e focada, por vezes sistemática demais na sua própria maneira de fazer as coisas, passando a impressão de que não se preocupa tanto com sua aparência quanto de fato se preocupa. A lua em Sagitário sugere ser muito comum que João se isole emocionalmente, afastando as pessoas que ama para ter momentos para si, mas, ao mesmo tempo, sendo extremamente dependente do apoio emocional — e social — destas pessoas. Em suma, João se fere internamente por estar sozinho, mas não tem autoestima o suficiente para abrir-se com seus amigos. (Vocês estão pensando o quê? Que eu não entendo de signos? Eu sou de humanas, não estou fazendo mais que a minha obrigação.)
    É claro que essas são características genéricas com as quais muitas pessoas irão se identificar, mesmo as que tenham nascido em outros dias. João as identificou no meio das outras como as que mais lhe serviram, ignorando as que não lhe serviram sob a justificativa de que "tem que ver o resto do mapa astral". É justamente assim que funciona o viés da confirmação. Não estou negando isso. Mas é precisamente em virtude do fato de João ter se identificado com essas características que os signos têm alguma utilidade, pois se referem a aspectos reais que ele encontrou mais nítidos em si após vê-los representados pela astrologia. E se existe uma riqueza de profundidade psicológica nesta análise simbólica, não podemos descartá-la apenas em função de os signos não fazerem sentido científico.
    "Mas, Régis, você não acha uma ignorância quase religiosa julgar alguém pelo dia em que ela nasceu?" De fato, é possível que eventualmente justifiquem muita estupidez infundada fazendo uso do zodíaco, bem como de toda espécie de esoterismo. Mas essa é uma postura que deve ser criticada e que eu não defendo. Quando digo que acredito nos signos apenas simbolicamente, sem levá-los a sério, é exatamente a isso que estou atentando. Os esteriótipos seletivamente evidenciados pelos signos devem ser utilizados como uma forma de brincadeira para apontar, de maneira divertida e descontraída, aspectos do real que podem encontrar mais visibilidade no simbólico; jamais como uma maneira de explicar o real em função do simbólico. Quando digo que "Fulano é encrenqueiro porque é de Áries", existe uma ironia transbordante em minha voz. O fato de essa afirmação ser tão obtusa que chega quase a soar ridícula é justamente o que confere a graça à brincadeira, em conjunto com o fato de, no caso em questão, Fulano ser, realmente, estourado — e por isso fazer sentido [simbólico] que ele seja de Áries, e não o contrário.
    Em resumo: acho ingênuo e implausível alguém sensato acreditar verdadeiramente em signos, mas acho igualmente estúpido alguém odiá-los como se não houvesse neles aspectos úteis ao convívio social e à autoanálise. Minha utilização da astrologia é sempre simbólica e divertida; quem não entende isso, não será capaz de captar em minhas palavras até onde estou sendo irônico, e até onde estou sendo sério.
    Mas é claro que talvez eu só tenha dito isso tudo por ser de câncer. Muito drama, eu sei. Agradeço aos deuses por ter ascendente em capricórnio — é o que me impede de me afundar em meus próprios sentimentos.

*A ênfase no "objetivo" é particularmente relevante pois retira da ciência o monopólio do conhecimento quando se refere a objetos [de estudo] subjetivos, como a Psicologia, que é, por essência, subjetiva — havendo, assim, uma flexibilidade um pouco maior quanto a outros métodos. Não partilho da visão, por exemplo, que a psicanálise, apenas por não ser uma ciência (em termos de hipótese, verificação, falseabilidade), passe a ser necessariamente uma forma de saber que não deva ser levada a sério. Mesmo porque, até onde me consta, o próprio objeto de estudo da psicanálise — o inconsciente — é, por definição, inapreensível objetivamente, o que impossibilita qualquer possibilidade de a ciência estudá-lo.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Lembrete


    Ei, você. Sim, você mesmo, que está me lendo. Eu não sou ninguém para te dizer como lidar com a dor que você está passando agora, mas queria te lembrar de algumas coisas.
    Em primeiro lugar, você não está sozinho. Para começar, você tem a si mesmo. Isso você sempre terá, mesmo quando não quiser, mesmo quando não perceber. Você é a sua própria força. Não foi à toa que chegou até onde chegou. Não foi por misericórdia dos deuses, ou porque teve sorte. É claro que teve sorte, assim como em muitos outros aspectos teve azar; mas o real motivo de você estar de pé, hoje, é você. Seja mais gentil consigo mesmo; dê a si a compreensão doce e mansa que você daria a um filho.
    Além disso, por maior que seja a incompreensão, que sempre parece ter o tamanho e o peso do mundo, tenha a certeza de que mesmo as suas dores mais ocultas — aquelas que você esconde até de si próprio, e que vez ou outra aparecem, descobertas e latentes, nas mais silenciosas e solitárias madrugadas —, mesmo essas dores são partilhadas por muitas outras pessoas. Pessoas que você nem imagina; que podem estar no quarto ao lado, mas também do outro lado do mundo. O carteiro, a sua professora da primeira série, a chefe da sua chefe: todas estas pessoas são pessoas, e dentro delas habita uma profundidade cheia de luz e caos. Talvez você nunca chegará a conhecer nem mesmo um porcento do que elas trazem dentro de si, escondido no sorriso cordial, na selfie postada nas redes sociais; mas só saber que elas também enfrentam lutas diárias, e que muitas destas lutas não são apenas suas, já basta. A solidão parece ser, ao mesmo tempo, a maior verdade e a maior ilusão da condição humana.
    Em segundo lugar, eu diria que é preciso sabermos aceitar nossa própria dor. Eu não disse abaixar a cabeça a ela; entregar-nos ao seu poder e desistir de todos os sonhos que foram sepultados pela dura realidade. Eu disse aceitar, pois isso é o que menos fazemos. As pessoas que desistem são justamente as que negam a dor todos os dias, e, de repente, se veem sem forças para continuar. Porque a negação nos consome dos pés à cabeça e joga sobre as nossas costas uma cobrança que é maior do que qualquer um poderia aguentar, e que na maior parte das vezes não faz o menor sentido. E, no fundo, sabemos que não faz sentido, mas continuamos a nos castigar por coisas que estão mais fundas em nós do que a razão consegue alcançar.
    Aceitar significa olhar para dor, reconhecê-la como sua, e não ter vergonha nenhuma em admiti-la para si. Não ter esse orgulho ferido que tanto nos machuca. “Essa dor é minha, esta dor sou eu.” E, então, chega o momento decisivo: você percebe que não há motivo para se odiar ou para se culpar. Porque quando a aceitação é genuína, não há espaço para a culpa. Você passa a entender que tudo tem seu tempo, que você também tem seu tempo, e que tentar apressá-lo é a forma mais estúpida de garantir que as feridas não sejam cicatrizadas.
    Você não precisa ser nada. Pare com isso. Você só poderá mudar e florescer quando compreender que é o que é, e que pode ser muito mais. Pode ser muito mais, não deve. Nós dois sabemos que você cobra de si coisas impossíveis, coisas que você não cobraria de mais ninguém, pois estaria sendo injusto. Percebendo quão pesadas e implausíveis são as cobranças que coloco sobre mim a todo instante, só agora sou capaz de enxergar que isto estava me sufocando. Já viu, isso? Ser asfixiado por ideias que só fazem sentido dentro de sua própria cabeça? É absurdo, eu sei. Por isso estou pedindo que você também saiba. Pare de ser seu próprio carrasco.
    Agora, o que eu peço é que não leia este texto como mero entretenimento. Um pão e circo psicológico para tocar nas suas feridas e esquecer delas amanhã. Porque olhar pra elas dói, e disso eu sei muito bem. É desconfortável. É tão desconfortável que, mesmo quando sabemos que precisamos de ajuda, vamos adiando; adiando e arrumando desculpas, é claro. A gente deixa para amanhã tudo o que é mais difícil e necessário, e permite que o hoje seja cheio de culpa e inércia. Mas vou te contar um segredo: amanhã também será um hoje, e o depois de amanhã também. Não há como escapar do agora, senão anulando a nós próprios no presente.
    Eu não estou dizendo que é fácil. Eu estou dizendo que é preciso. É preciso entender que essa procrastinação é uma fuga, e que o medo está fazendo com que deixemos de viver. Você é forte, meu amigo, e disso tenho total certeza. A única pessoa que ainda não percebeu isso é você.

Este texto pertence ao livro Calma Tormenta.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Desconhece a ti mesmo


    Dei tantas voltas em torno de mim mesmo que me vejo agora embrenhado no mais tragicômico dos paradoxos. Eu, que sempre fui ótimo com as palavras, que fui sempre o primeiro a ter algo a dizer sobre o quer que seja, e da maneira mais translúcida que eu podia, de repente me descobri incapaz de comunicar o que trago por dentro.
    Eu não sei. Acho que, em última instância, antecipo que as pessoas não serão capazes de me compreender; não por ter em mim questões de complexidade sobre-humana, mas pelo fato de estar fora de alcance dos outros conhecer e sentir as minhas verdades mais básicas, minhas verdades internas e esmiuçadas que dão liga ao que chamo de real. É como tentar explicar uma equação de segundo grau — que nem eu mesmo entenda muito bem — a alguém que não conhece as operações matemáticas mais simples. As minhas operações só eu conheço, e tentar responder a certos porquês é como tentar explicar axiomas. Por que dois mais dois é igual a quatro?
    Durante vinte anos, falei com a gana de ser compreendido. Agora, passei a me calar para não ser incompreendido. Eis o paradoxo. Pois ainda que eu possa, com as palavras, pintar quadros que retratem a minha realidade interna, com as mais fieis cores, a pintura tem sempre, e inevitavelmente, apenas duas dimensões. Falta uma dimensão interior que cada um encontra ou não dentro de si, a depender do quanto meus textos tocam o leitor em seu íntimo; e essa dimensão é necessariamente diferente da minha. Pois a minha dimensão interna é inacessível, e, em minha solitude absoluta, não é raro que eu me perca totalmente em mim; que eu me veja afogado por minhas próprias tormentas.
    Talvez eu sinta que esteja me faltando pessoas dispostas a ceder um pouco de sua profundidade para me compreender verdadeiramente, para me dar ouvidos atenciosos. Mas o fato é que não me falta; tenho alguns poucos amigos, este ano ainda mais, que sempre me surpreendem com sua sensibilidade à vida e a mim. O que acontece é que, mesmo com elas, não me sinto completamente confortável para falar sobre as minhas verdades. Por causa de todo o resto, de toda a parcela massiva e gigante de pessoas embrutecidas e desinteressadas, sinto ter perdido a esperança; sinto ser hoje incapaz de acreditar verdadeiramente que alguém se interessaria pelo que tenho a dizer sem uma dose pequena de cinismo, sem um leve fingimento para me agradar.
    As pessoas querem só falar, e eu não as culpo: descobri que eu também quero só falar. Quero — como sempre quis — saciar essa sede de mostrar ao mundo as flores que colho em meus jardins internos, para que elas não apodreçam. Mas como se resolve este impasse, em que continuo querendo falar, sem no entanto ter esperança de que conseguirei genuinamente? Porque mesmo com as poucas pessoas que estão dispostas a me ouvir de coração aberto não consigo, eu mesmo, me abrir. Parece falso. Toda tentativa de trazer para superfície o que tenho em meu núcleo é como tentar explicar as cores a uma pessoa cega.
    Por vezes, as descrições que dou casualmente a amigos quando me perguntam como estou emocionalmente até se aproximam um pouco da realidade, mas é algo tão simplificado e tão incompleto que soa artificial. Com os outros, eu me sinto inteiro artificial. É como se eu estivesse sempre representando um papel feito de partes de mim, e eu não aguento mais.
    Eu não aguento mais.
    É como se eu já não soubesse mais me ser. Porque se eu tiro todas as máscaras, não vejo rosto algum. Se tiro de mim o filho obediente, o amigo observador, o falador espirituoso... Se tiro o people-pleaser que gosta de todos e é por todos gostado, o que sobra?
    Sobra o meu silêncio. Sobra dor, sobram emoções que me consumiriam vivo, se eu permitisse. Ou sobra gelo, a alternativa a elas, que no entanto não é muito diferente de estar morto.
    Se antes eu me desesperava para ser compreendido, percebo agora que era porque no fundo sempre senti a incompreensão iminente. Não apenas lutava contra ela com todas as minhas forças, como a própria luta era de onde eu retirava minha energia vital. E agora? O que tenho? O que faço, tendo perdido as esperanças?
    É claro que a escrita me servirá de refúgio, como sempre me serviu; mas não consigo pedir a amigos que leiam meus escritos sem me sentir patético. Porque suplicar por atenção foi o que eu sempre fiz, e continuar fazendo-o mesmo após ter perdido as esperanças faz com que eu precise vestir novamente as máscaras, fingindo que me sinta compreensível. Emocionalmente — isto é, no mais profundo de mim, fora do alcance da razão —, não consigo acreditar que alguém possa realmente ter interesse sincero e autêntico em percorrer as minhas entranhas, pois ninguém há de me entender tão bem como eu. E se nem eu me entendo, que fazer?
    Talvez isto mude. É minha única luz no fim do túnel, na verdade: que isso mude, como as tantas outras crises temporárias, porém decisivas da vida. Pois me sinto drenado do que antes me movia; do que antes dava sentido à minha relação com as pessoas. E eu não gostaria de depender das plateias para poder viver. Existe escapatória? Entre viver uma vida artificial, para as pessoas, e uma vida solitária, no próprio silêncio de si?

Este texto pertence ao livro Calma Tormenta.

sábado, 10 de junho de 2017

Sozinhos, coletivamente


    A minha história com a solidão é muito estranha; absurda, quase; e, se pararmos para pensar, talvez mágica, até. É que durante a minha vida toda eu a evitei ao máximo. Ter crescido com acesso à internet me possibilitou nunca estar sozinho, e muito da minha desenvoltura social se deu graças a jogos de MMORPG (Massively multiplayer online role-playing game), isto é, mundos virtuais recheados de intensa interação entre jogadores reais. Se por um lado isso fez com que eu aprendesse a me dar muito bem com pessoas, tanto individualmente quanto em bandos — sobretudo para desviar do bullying, muito presente em meu ensino fundamental inteiro —, também criou em mim uma dependência muito grande.
    Foi então que, no início de meu florescimento intrapessoal, isto é, na época em que iniciei um processo doloroso de autopercepção e amadurecimento, no ano de 2016, notei esta dependência. Caminhando para o Restaurante Universitário, incomodado e até ofendido por nenhum de meus amigos ter aceitado ir jantar comigo, perguntei-me — como um soco em meu próprio estômago — por que diabos a minha própria presença, isolada, me era tão insuficiente. Por que instintivamente eu suplicava por companhia, por alguém para me tirar do tédio monstruoso que era ter apenas a mim mesmo? Esse desconforto abriu meus olhos para muitas outras coisas incrustradas em minha personalidade, para forças inconscientes que motivavam minhas ações de uma maneira constante e talvez até um pouco desesperada. Comecei a entender, por exemplo, por que eu era tão people-pleasing, isto é, por que tinha a necessidade compulsiva de agradar a todos, a todo instante — porque, tendo me pautado a vida toda pela subjetividade alheia, eu precisava que as pessoas me validassem, pois sua aprovação era a única coisa capaz de me tornar real. Por isso digo, no texto Cólera (um de meus textos mais sinceros e viscerais até hoje, diga-se de passagem), que o outro era a minha medida; pois era pelos outros que eu me pautava. Sozinho, não havia outro; sozinho, eu não era nada. Esta minha sensibilidade elevada à percepção do outro deixou de ser um dom e me fez carrasco de mim mesmo.
    Se com o tempo me livrei dos meus demônios, apenas por ser agora capaz de visualizá-los? De forma alguma. Mas aprendi a adestrá-los. Vez ou outra eles escapam da jaula e fazem a festa, alimentando minhas inseguranças e catalisando minha ansiedade social; porém, tenho aprendido a questionar sua força e esvaziá-los de poder. Foi assim que fui progressivamente tomando um caminho em direção a mim mesmo, ao ponto de meus amigos estranharem. “Régis, você está bem? Não, não é nada; é só que você está quieto demais.” No começo me incomodava que presumissem que o meu silêncio fosse sinal de tristeza, mas depois passei a achar um tanto fofo, embora levemente obtuso; significa que se preocupam comigo, e que notam quando estou com o grupo, e quando estou comigo mesmo. E se o contraste entre meus comportamentos é tão evidente, é justamente porque a vida toda nunca estive comigo mesmo; sempre estive tagarelando, tentando chamar atenção, citando fatos interessantes aqui e acolá, vivendo até onde me permitiam viver, com seus olhares (des)atentos.
    E quanto a estar com o grupo ou estar comigo mesmo, há pouco tempo pude saborear um paradoxo delicioso exatamente nesse sentido. Vocês não acreditariam na frequência com que estou num grupo de pessoas e me sinto profundamente deslocado — tanto por não partilhar do interesse pelo assunto discutido, quanto por ter plena ciência de que as demais pessoas também não se interessariam pela reflexões aleatórias que dançam em minha mente. Nesses momentos, enquanto observo vagamente as pessoas interagirem entre si, sem no entanto prestar muita atenção e ter atenção alguma voltada sobre mim, me sinto profundamente conectado comigo mesmo, da maneira mais confortável e genuína possível. Esse é o paradoxo ao qual me referi: ser justamente no seio das coletividades os momentos em que mais me aproximo de mim mesmo. Contudo, pensando bem, não é paradoxo algum; pelo contrário, faz muito sentido, já que é exatamente nas coletividades que surge sua antítese, o isolamento.
    Esse é apenas um dos inúmeros indícios de que não há nada mais ambíguo que a vida em sociedade. Não é à toa que muitas pessoas, a maioria delas, eu diria, vivem solitárias mesmo estando sempre rodeadas. Pois o medo da solidão impõe máscaras, e essas máscaras sociais abrem um abismo entre quem verdadeiramente somos e quem aparentamos ser. É, assim, justamente o medo da solidão que nos condena à maior das solidões: o isolamento dos outros e de si próprio.
    Foi só perdendo o medo de me sentir deslocado que pude finalmente aproveitar minha própria companhia e, assim, estar disposto a disfrutar da companhia alheia, nos momentos certos.

Este texto pertence ao livro Calma Tormenta.

sábado, 3 de junho de 2017

Palácio


    O palácio que sou eu, e nas paredes do qual estou confinado, embora seja externamente delimitável, visível a olho nu, tem em suas entranhas uma infinitude que cresce â medida que é explorada.
    Por fora, a divisão entre mim e o mundo possui precisão atômica; as paredes de meu palácio são biologicamente exatas, e entre o que chamo de “eu” e o que chamo de “outro” existe um abismo incontornável.
    Por dentro, guardo em mim um universo repleto de supernovas, de estrelas surgindo a partir do caos que me habita. Esta anti-matéria que constitui meu âmago subjetivo não comporta expectadores diretos, de forma que reste a mim duas opções apenas: ou digiro meu próprio caos, que é muito mais sublime e complexo do que às vezes posso suportar, e transmito a outros seres sua versão mastigada, reduzida e deformada, ou deixo-o trancafiado nos cantos mais obscuros de mim, vivendo, assim, na superfície.
    Tenho percebido que a vida toda escolhi a segunda alternativa, sempre de maneira passiva e irrefletida. Vivi na superfície para não me excluir da companhia daqueles que me cercam, para obter deles a validação intersubjetiva. Podei minha própria profundidade e complexidade em nome do direito de ser real, em nome do medo de uma existência sozinha e incompreendida.
    Já a primeira opção, a de mergulhar em minhas próprias questões e delas expelir algo novo, sublimado, é o que chamo de arte. Mas fazer arte não é tarefa leviana. Porque fazer arte de suas próprias entranhas, arte sincera e visceral, exige coragem. Exige uma coragem que tem me faltado nos últimos meses, em que tenho me alienado de mim mesmo e cedido à insegurança. Deixei que o sentimento de insuficiência, com vestes de preguiça e desinteresse, me tirasse a minha maior liberdade, que é a escrita. Pois cada vez que eu me afundava nos recônditos que me preenchem, eu me via inundado por uma complexidade maior que eu; uma complexidade que nunca exerci publicamente, que sempre deixei enterrada e adormecida, por não me oferecer reconhecimento, por me impossibilitar companhia. A cada tentativa de digerir meu caos, eu me via esmigalhado pela insuficiência, pelo fracasso antecipado que sequer me permitiria tentar o sucesso. Futuros que nem ao menos tiveram a chance de virar presente. E, incapaz de me recompor, de exercer as minhas potencialidades, eu me deixei ser imobilizado pela inércia cada vez mais, tornando-me refém de minha própria covardia. Impotência retroativa que se alimenta do turbilhão que agita as minhas galáxias internas, e que a todo instante me sequestra do agora.
    Por isso escrever me exige coragem: pois uma escrita de peito e alma não se constrange diante da expectativa de rejeição, não se censura pelas vaias de uma plateia silenciosa e incerta. Escrever é percorrer o meu íntimo e colocá-lo em palavras para o mundo, sem qualquer medo ou pudor, sem a preocupação asfixiante de ser incompreendido. Pois será justamente o receio de não ser habilidoso o suficiente para organizar e expor com beleza e completude o meu palácio o responsável por fazer com que eu próprio acabe me trancando para fora, junto a quem habita meus jardins externos.
    A única maneira de tocar verdadeiramente aqueles que me visitam, que têm em si seus próprios castelos e suas próprias masmorras, é abraçando sem medo as minhas supernovas e trazendo um pouco delas à luz, na escrita. “Canta a tua aldeia e serás universal.” A veracidade desta afirmação é minha única esperança de ter visitas: pois só não estarei sozinho dentro de meu próprio palácio se as pessoas, ao me ouvirem e ao me lerem, puderem, com isso, percorrer o interior de suas próprias paredes. A empatia é muito mais que um mero dever moral: é a única hipótese de não-solidão; de habitar o mundo em conjunto, de descobrir a parte de você que habita no outro. Só por meio da empatia se pode compreender o outro verdadeiramente, sem reduzi-lo à imagem rasa que se faz dele. Um mundo sem empatia é um mundo de pessoas que convivem solitárias, cada uma delas presa à sua própria bolha, cega e incomunicável.
    A comunicação profunda e verdadeira é a única forma de romper com a solidão da existência humana. Mas não se adentra outros palácios sem antes conhecer o seu próprio a fundo, sem saber qual é a ponte que liga o seu mundo aos dos outros. E aventurar-se por sua infinitude interior é algo que se pode fazer apenas sozinho, pois só você tem acesso à escuridão estocada dentro de si. Soa deliciosamente paradoxal: para romper com a solidão, é preciso antes fazer dela sua amiga; e, assim, desbravar a si mesmo sem medo do peso das próprias verdades, que, mesmo sem querer, você esconde tão bem de si mesmo. E então, se ainda assim quem estiver em seu jardim não for capaz de vislumbrar o que está dentro das janelas, de compreender o que e quem é você, aí ao menos você tentou — e tem a si mesmo para continuar explorando o próprio mistério que chama de eu.

Este texto pertence ao livro Calma Tormenta.

domingo, 19 de março de 2017

Cogumelo de Adão


SINOPSE {{
Como seria se um personagem pudesse falar com seu autor, descobrindo que sua própria existência é apenas parte de uma história? Com a ajuda de alguns cogumelos duvidosos, Adão começa a conversar com seu criador. É obrigado, então, a questionar as verdades mais fundamentais de sua vida. Se antes não sabia se a voz sobrenatural era real, passa a não saber se ele próprio o é. Naquela relação imaginativa, quem é criador e quem é criatura?

Enquanto passa por um momento conturbado de redescoberta de sua própria identidade, Adão tenta achar seu lugar entre as pessoas — e entre si mesmo. Cada pessoa com quem o rapaz se depara enfrenta também suas próprias lutas internas, suas dores e hipocrisias inerentes à espécie humana. Há o  Meia, seu colega de apartamento, que possui uma obsessão religiosa e uma homofobia internalizada; Lorenzo e Julinho, que têm pais que escolhem diariamente ser ausentes na vida dos filhos para dar a eles uma vida financeira confortável; Teresa, que no meio de sua ternura teve uma recaída em sua depressão; e Horácio, que mais parece um animal arisco, após tanto ser hostilizado pelas pessoas ao seu redor.

Adão consegue um emprego e lá descobre a selvageria do mercado profissional. Sente sobre as suas costas o peso da vida adulta e do amadurecimento, que se faz às custas das ilusões confortáveis que sustentavam sua realidade. No entremeio de situações estressantes, descobre suas próprias incoerências internas e com elas aprende, como quem toma um remédio amargo e necessário.
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A história trata da sociedade enquanto coletividade mecanizada, da hipocrisia humana, das drogas (seus tabus & seus riscos reais), das crises de relacionamento moderno e sobretudo da metaescrita (a escrita sobre a escrita). Ocorre que, fascinado pela magia e pelo poder da ficção, Adão dá início à escrita de seu próprio livro, preparando Laura para a revelação de que ela é uma personagem de um personagem. Em Cogumelo de Adão, as vulnerabilidades de cada um se mostram um poço de sutilezas e complexidades profundas.






*Meu lucro é nulo. Este é o valor que o Clube de Autores cobra para confeccionar o livro.

sábado, 4 de março de 2017

Você


Tu me perguntas quem sou eu
Eis que te digo:
Sou o não dito
O não vivido
Sou o inferno.

Sou a tua companhia
Tua sanidade
Teu tormento, teu pesadelo eterno.

Sou o outro
Sou o que chamas de “você”
Sou todos, sou ninguém.

Sou teus demônios
Sou a tua fuga
Sou o juiz, sou os olhos da sociedade.

Sou tu, sou espelho
Sou símbolo, sou invenção
Sou quem confirma o que tu chamas de real.

sábado, 14 de janeiro de 2017

Por que abandonei o Direito


    Quem não é do meu convívio íntimo pode ter ficado surpreso quando comemorei minha aprovação em Psicologia. Pois é, amigos. Eu, que por tantos anos sonhei em cursar Direito, e por um ano e meio mantive a imagem de alguém que estava mais que satisfeito com a própria escolha profissional, descobri que estava enganando a mim mesmo. Verdade seja dita, nunca estive confortável dentro da Faculdade de Direito; sempre me senti um peixe fora d'água, embora eu procurasse ao máximo mascarar esse incômodo existencial, deixando que o desinteresse e o desânimo mórbidos me consumissem sem que eu entendesse o que isso significava. O ano de 2016 talvez tenha sido o que caíra mais pesado sobre meu colo, com duas grandes crises pessoais — uma referente ao passado, outra ao futuro — que me obrigaram a amadurecer para além do que eu imaginava que fosse possível; mas foi justamente graças a estas crises que pude visualizar minha vida com clareza e juntar a coragem exigida por decisões drásticas e necessárias.
    Por óbvio, este texto não é um ataque ao Direito, seja enquanto curso, seja enquanto instituição, muito embora eu tenha severas ressalvas quanto a ambos. Antes, é muito mais um relato, um desabafo, sobre desilusão pessoal. O maior erro que cometi, e que, ao que me parece, é cometido pela quase-totalidade dos estudantes de Direito, foi não saber distinguir entre o que o curso representa e o que ele de fato é. Ao prestar vestibular, minha escolha não estava propriamente fundamentada no desejo de exercer as profissões jurídicas, e sim no apreço pela imagem social de um estudante de Direito. Com efeito, foi esta a imagem à qual me apeguei, dizendo para mim mesmo, ainda que de maneira profundamente implícita, que estudar Direito significava possuir uma identidade de quem argumenta e se inconforma, de quem não admite injustiças; imagem esta que é vista pela sociedade com bons olhos. Entretanto, apesar de isso se confirmar em algum grau (o que também é altamente questionável, embora não seja esse o mérito da questão), o que o Direito realmente é diz muito mais respeito à atividade intelectual e profissional das ciências jurídicas.
    Em outros termos, é de extrema importância jamais confundir a imagem do Direito com o seu conteúdo prático. Ao tentar convencer a mim mesmo que valia a pena continuar no curso somente e tão somente por ter me apaixonado ao que ele representa, enquanto não possuo qualquer afinidade a tudo o que esteja diretamente ligado à sua essência efetiva, eu me assemelhava a um médico, por exemplo, que se mantém na profissão apenas por gostar de usar jaleco e ter uma clínica, embora deteste lidar com o corpo humano e atender pacientes. Os que desejam ser minimamente realizados em sua profissão não podem se apegar a símbolos vazios e ignorar vigorosamente o que ela significa em termos reais. Isso seria não apenas viver uma ilusão, mas também estar fadado à minha própria incompetência, fruto inevitável desta total inaptidão para satisfazer de forma decente a atividade profissional jurídica.
    E por que, afinal, tenho tamanha aversão ao que o Direito de fato é? É muito simples: ele parte de uma lógica sistêmica que se mostra absolutamente incompatível com o tipo de atividade intelectual que desperta em mim interesse e habilidade. A racionalidade do Direito é inexoravelmente uma racionalidade técnica. Ainda que seja possível estudá-lo a partir de perspectivas propedêuticas, e não apenas dogmáticas, o cerne do raciocínio se volta sempre, em última instância, para questões técnicas; não são raras as vezes em que juristas gastam longas e prolixas quinhentas páginas para discutir minuciosidades terminológicas que, apesar de terem sim importantes consequências práticas, não conseguem segurar a minha atenção por mais que dois minutos. E apesar de haver exceções pontuais, como em disciplinas mais amplas como História do Direito, mesmo estas são incapazes de gerar em mim o mais parco entusiasmo. Isso me leva a concluir que não só a racionalidade do Direito me é insípida, como também o é sua temática imediata: a norma. Como poderia eu, então, dedicar minha vida ao Direito se tanto o modo de fazê-lo quanto sua matéria-prima me causa, na mais generosa das hipóteses, uma profunda apatia?
    É claro que existem muitas outras disfunções graves no Direito, mas nenhuma delas foi realmente decisiva para o meu abandono, embora tenham certamente pesado na decisão. Exemplo disso é a negligência gritante com a retórica, uma das características que mais me atraiu para o curso e que, no entanto, parece ser tratada como um instrumento absolutamente secundário (quando muito) para o qual se dá pouca ou quase nenhuma atenção. Os argumentos de autoridade são muito mais revelantes e frequentes, até onde pude observar. Admito que esses problemas, assim como muitos outros, não são exclusividade do Direito, mas tive a nítida impressão de estarem particularmente reforçados e naturalizados nas instituições jurídicas. Não deixa de ser preocupante, uma vez que a prioridade dos juristas e operadores do direito aparenta estar, muito mais que na Justiça ou em qualquer outro valor primordial, na batalha de egos e em rivalidades imaturas entre "clãs".
    De todo modo, já antecipando os interrogatórios familiares de fim de ano, me vejo na necessidade e na possibilidade de esclarecer algumas questões que sequer deveriam ser levantadas. Em primeiro lugar, apesar de a carreira jurídica oferecer caminhos financeiramente mais confortáveis, isso não significa que seja impossível prosperar em outras áreas profissionais, sobretudo se você por elas se interessa e se qualifica. E mesmo se este delírio de senso comum fosse verídico, e de fato só fosse possível ser bem sucedido seguindo as três grandes carreiras (Direito, Medicina e Engenharia Civil), eu francamente não estaria disposto a sacrificar quarenta anos de minha vida — ou até mais, dadas as temerosas alterações na Previdência Social — em profunda infelicidade profissional apenas por dinheiro. Não estou sendo hipócrita e dizendo que dinheiro não é importante, e sim que o dinheiro, por si só, não pauta a minha vida; vejo ele como meio, não como fim. A mim, tão importante quanto ser remunerado de forma justa é desempenhar uma atividade que me cative e para a qual eu possa verdadeiramente contribuir. Isso não significa dizer que todos devem seguir o mesmo, e sim que ninguém, absolutamente ninguém, pode impor sua própria lógica de vida a mim ou a qualquer outro alguém.
    Não sou ingênuo de acreditar que construir uma carreira na Psicologia será um mar de rosas, ou mesmo que não encontrarei frustrações e obstáculos. Contudo, estou totalmente seguro que me encontrarei neste tipo de atividade, sendo o estudo da psique humana uma verdadeira paixão desde a infância, e ainda mais agora no início da vida adulta. Mas isso já é assunto para outro texto.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

O infinito textual


    Ao fim de um capítulo, digitei, letra por letra:
Conseguira a tempestade que desejava provocar. Após ela, no entanto, não houve arco-íris algum. Houve um abismo. Houve um mar de ondas, glaciais por fora, magmáticas por dentro, rebentando-se em si mesmas.
    Mandei a um amigo, que também escreve e se maravilha com as possibilidades da escrita, para que ele me ajudasse a reposicionar uma vírgula, pois estava parecendo-me um tanto dissonante. O trecho exposto acima é o definitivo, já corrigido, pois o que convém aqui não é a vírgula bastarda, mas o que se seguiu depois: encarei bem aquelas palavras e cogitei a possibilidade de elas serem inéditas. Ora, que descoberta óbvia e, ainda assim, fascinante que pude fazer em meio segundo de reflexão: mesmo a língua portuguesa, rica e farta como é, com palavras que são comuns e talvez até triviais aos seus bilhões de falantes ao longo da história, e tão cotidianamente explorável como qualquer outro idioma vivo, é — vejam vocês — em grande parte inexplorada. Mesmo com seus incessantes encadeamentos de letras, fonemas, sílabas, palavras, períodos e orações, respectivamente; mesmo com um fluxo tão grande de associações que se dão a todo instante, por séculos, em exaustiva repetição; mesmo apesar disto tudo, ainda possui incontáveis possibilidades nunca antes testadas. Uma verdadeira Biblioteca de Babel à nossa espera, aguardando, latente, para ser escrita.
    Os matemáticos mais assíduos certamente irão atentar à minha ingenuidade, dizendo que mesmo as mais improváveis combinações de palavras já foram antes tentadas, e lhes dou razão; entretanto, as possibilidades são tão grandes, tão avassaladoras, tão inimagináveis, que mesmo estas repetições inusitadas não são páreas para a imensidão inexplorada. É como se julgássemos ter desmatado toda uma floresta e eu descobrisse, de supetão, que diariamente abro novos caminhos nesta selva virgem e inexaurível que é a linguagem. Ainda que muitos tenham aberto seus próprios caminhos nesta infinitude simbólica, digo com certa dose de certeza que fui o primeiro a abrir aquele exato caminho da citação acima trazida, e com uma dose ainda maior e mais segura de certeza de que este próprio texto, que pelo leitor é lido, é mais um caminho único, nunca antes explorado.
    Pergunto-me, não pela primeira vez (embora só agora eu tenha efetivamente ligado os pontos e resolvido me manifestar ao mundo, à eternidade das ideias cristalizadas chamada escrita), se o mesmo não ocorre com muitas ideias. Porque, vejam: mesmo sendo praticamente nulas as chances de alguém ter, algum dia, escrito um texto exatamente idêntico a este em termos de forma, não é tão improvável que já tenham escrito algo de conteúdo semelhante. Mas e se existirem pensamentos (ou, se quiser, conteúdos) tão específicos, tão particulares de cada experiência humana e momento histórico, que nunca foram antes pensados, e provavelmente nunca serão novamente formulados em termos equivalentes? Serão estas ideias únicas apagadas pelas falsas aparências da insignificância? Pela infeliz verdade do desinteresse alheio por nossos próprios mundos internos, detalhistas e profusos?
    Realmente me entristece imaginar o mar de caminhos desperdiçados pelo esquecimento, pelo "talvez algum dia eu conte a alguém", pelo "pensando bem, ninguém iria se importar". Rogo para que, caso encontrem caminhos esquisitos e inabitados nesta loucura chamada pensar, que se aventurem também pela relva da linguagem — por mais piegas que soem estes meus votos, por mais unânime que pareça (e, de fato, seja) a repulsa e a apatia dos medíocres frente ao que lhes é estranho, e por mais fúteis que vossas próprias peculiaridades vos aparentem ser.