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sábado, 10 de junho de 2017

Sozinhos, coletivamente


    A minha história com a solidão é muito estranha; absurda, quase; e, se pararmos para pensar, talvez mágica, até. É que durante a minha vida toda eu a evitei ao máximo. Ter crescido com acesso à internet me possibilitou nunca estar sozinho, e muito da minha desenvoltura social se deu graças a jogos de MMORPG (Massively multiplayer online role-playing game), isto é, mundos virtuais recheados de intensa interação entre jogadores reais. Se por um lado isso fez com que eu aprendesse a me dar muito bem com pessoas, tanto individualmente quanto em bandos — sobretudo para desviar do bullying, muito presente em meu ensino fundamental inteiro —, também criou em mim uma dependência muito grande.
    Foi então que, no início de meu florescimento intrapessoal, isto é, na época em que iniciei um processo doloroso de autopercepção e amadurecimento, no ano de 2016, notei esta dependência. Caminhando para o Restaurante Universitário, incomodado e até ofendido por nenhum de meus amigos ter aceitado ir jantar comigo, perguntei-me — como um soco em meu próprio estômago — por que diabos a minha própria presença, isolada, me era tão insuficiente. Por que instintivamente eu suplicava por companhia, por alguém para me tirar do tédio monstruoso que era ter apenas a mim mesmo? Esse desconforto abriu meus olhos para muitas outras coisas incrustradas em minha personalidade, para forças inconscientes que motivavam minhas ações de uma maneira constante e talvez até um pouco desesperada. Comecei a entender, por exemplo, por que eu era tão people-pleasing, isto é, por que tinha a necessidade compulsiva de agradar a todos, a todo instante — porque, tendo me pautado a vida toda pela subjetividade alheia, eu precisava que as pessoas me validassem, pois sua aprovação era a única coisa capaz de me tornar real. Por isso digo, no texto Cólera (um de meus textos mais sinceros e viscerais até hoje, diga-se de passagem), que o outro era a minha medida; pois era pelos outros que eu me pautava. Sozinho, não havia outro; sozinho, eu não era nada. Esta minha sensibilidade elevada à percepção do outro deixou de ser um dom e me fez carrasco de mim mesmo.
    Se com o tempo me livrei dos meus demônios, apenas por ser agora capaz de visualizá-los? De forma alguma. Mas aprendi a adestrá-los. Vez ou outra eles escapam da jaula e fazem a festa, alimentando minhas inseguranças e catalisando minha ansiedade social; porém, tenho aprendido a questionar sua força e esvaziá-los de poder. Foi assim que fui progressivamente tomando um caminho em direção a mim mesmo, ao ponto de meus amigos estranharem. “Régis, você está bem? Não, não é nada; é só que você está quieto demais.” No começo me incomodava que presumissem que o meu silêncio fosse sinal de tristeza, mas depois passei a achar um tanto fofo, embora levemente obtuso; significa que se preocupam comigo, e que notam quando estou com o grupo, e quando estou comigo mesmo. E se o contraste entre meus comportamentos é tão evidente, é justamente porque a vida toda nunca estive comigo mesmo; sempre estive tagarelando, tentando chamar atenção, citando fatos interessantes aqui e acolá, vivendo até onde me permitiam viver, com seus olhares (des)atentos.
    E quanto a estar com o grupo ou estar comigo mesmo, há pouco tempo pude saborear um paradoxo delicioso exatamente nesse sentido. Vocês não acreditariam na frequência com que estou num grupo de pessoas e me sinto profundamente deslocado — tanto por não partilhar do interesse pelo assunto discutido, quanto por ter plena ciência de que as demais pessoas também não se interessariam pela reflexões aleatórias que dançam em minha mente. Nesses momentos, enquanto observo vagamente as pessoas interagirem entre si, sem no entanto prestar muita atenção e ter atenção alguma voltada sobre mim, me sinto profundamente conectado comigo mesmo, da maneira mais confortável e genuína possível. Esse é o paradoxo ao qual me referi: ser justamente no seio das coletividades os momentos em que mais me aproximo de mim mesmo. Contudo, pensando bem, não é paradoxo algum; pelo contrário, faz muito sentido, já que é exatamente nas coletividades que surge sua antítese, o isolamento.
    Esse é apenas um dos inúmeros indícios de que não há nada mais ambíguo que a vida em sociedade. Não é à toa que muitas pessoas, a maioria delas, eu diria, vivem solitárias mesmo estando sempre rodeadas. Pois o medo da solidão impõe máscaras, e essas máscaras sociais abrem um abismo entre quem verdadeiramente somos e quem aparentamos ser. É, assim, justamente o medo da solidão que nos condena à maior das solidões: o isolamento dos outros e de si próprio.
    Foi só perdendo o medo de me sentir deslocado que pude finalmente aproveitar minha própria companhia e, assim, estar disposto a disfrutar da companhia alheia, nos momentos certos.

Este texto pertence ao livro Calma Tormenta.