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quarta-feira, 7 de março de 2018

O amor é uma ilusão?


​    Muito se discute a respeito do amor. Uns pintam-no como a salvação última e espiritual da humanidade; outros, como uma balela na qual os românticos nos convenceram a acreditar. Entre essas duas visões extremas, muitas outras perspectivas se aninham. No entanto, pouco se discute com clareza e profundidade. Na gana de expressar e fundamentar suas crenças ou descrenças emocionais no amor, as pessoas não raramente confundem vários subtemas filosóficos que estruturam a questão, tomando-os como se fossem um só e reduzindo a discussão a um ou outro aspecto.
​    Antes de mais nada, é preciso conceituar o amor — o que, por óbvio, não é nada fácil. Não só porque existem muitas formas de amar, mas sobretudo porque a experiência de cada sujeito com o amor é única, irredutível e incomunicável. Como, portanto, podemos falar de algo que é diferente para cada pessoa? Como falar do que permeia as diferenças, do que resiste à tentativa de transmissão, do que sobra no vácuo das palavras? Complicado, para dizer o mínimo. Impraticável, se estamos sendo totalmente sinceros.
​    É por isso que, ao vir aqui me dispor a falar de amor, tenho de inevitavelmente me restringir a falar do que eu acho que seja o amor — nos moldes do que eu vivi e observei. É, portanto, uma visão que não pode se dissociar do seu próprio aspecto pessoal.
​    Há duas posições diametralmente opostas que podem me dar uma base para explicar o que acho que seja o amor. A primeira delas diz que o amor é encontrar um outro alguém que nos faça sentir menos incompletos, mais preenchidos na lacuna do nosso ser. A segunda visão, fundada num ceticismo que, com orgulho, se considera "duramente realista", e que portanto rejeita a primeira, diz que o amor é apenas uma ilusão.
​    Pois bem: concordo com ambas. É importante perceber que elas não se anulam, como a nossa intuição parece querer sugerir. Para mim, o amor realmente está associado â sensação de que a nossa falta está sendo em alguma medida suprida, ainda que parcial e provisoriamente. Todo aquele lance psicanalítico de "desejo de se tornar uno com o outro", de reencontrar a unidade perdida, de tornar a ser o objeto de desejo do outro. E, sim, isso evidentemente é uma ilusão: embora se possa sentir essa falta sendo suprida, ela nunca de fato chega a sê-lo, pois um certo nível incontornável de solidão parece fazer parte da condição humana.
    Em última instância, estamos sozinhos nas nossas questões, no núcleo do nosso ser. Claro: quanto maior e mais verdadeira a conexão com o outro, menos sozinhos nos sentimos, e isso é lindo e importante; mas existe sempre aquele resquício de um eu que é só seu, que não pode ser visto, sentido ou tocado, muitas vezes nem por si mesmo. É nesse abismo entre o eu e o outro que se abre a nossa própria incompletude, e não por coincidência a nossa própria indeterminação de não se saber exatamente quem se é.
​    Porém, eis a questão que muitas pessoas negligenciam: dizer que o amor é uma ilusão não significa necessariamente dizer que ele é uma mentira, mas que ele é da natureza de uma esperança. Amar é ter fé numa promessa de completude; é ter tanta confiança um no outro a ponto de ambos transcenderem o próprio abismo e se comunicarem cada um dentro da sua própria incompletude. E nisso os românticos não poderiam estar mais corretos: esta é uma das coisas mais valiosas que porventura temos a sorte de encontrar na existência.
    Em outras palavras, o que estou dizendo é apenas que a completude que o amor promete não é real, e nunca será — por mais que possa se aproximar de ser —, mas que, nem por isso, o sentimento de amar deixe de ser real e sublime. Quem reduz o amor a processos bioquímicos realmente não entendeu nada sobre o que é o amor, sobre a sua natureza de ilusão que preenche, que faz a vida voltar a ter sabor. Muitas vezes, o amor é a única coisa na qual realmente conseguimos nos agarrar nesse lapso curto e confuso de existência.
​    O que de fato importa é que seja verdadeiro — tanto para quem ama, quanto para quem é amado. Sendo genuíno o sentimento, não há o que se dizer ou duvidar: se você já amou alguém, não precisa pensar duas vezes para saber. E isso jamais deve ser diminuído por reflexão filosófica alguma. O exercício de raciocínio que devemos fazer para investigar de onde e por que o amor vem (partindo das nossas próprias questões pessoais e inconscientes) não deve ser jamais um exercício de desilusão, mas de compreensão. Pois se não entendemos o que nos faz amar, passamos então a ser escravos de tudo aquilo que o amor gera em nós e que nos faz mal. Sentimentos com os quais nos identificamos porque doem, mas que na realidade sequer entendemos por que estão ali. E, claro, sem entender as nossas próprias lacunas, não saberemos trabalhar as incompatibilidades. Pois uma vez que cada pessoa ama de forma especial e singular, nem sempre o sentimento de dois amantes é compatível, ainda que seja verdadeiro. (Na maior parte dos casos, aliás, me parece que a compatibilidade é meramente superficial e provisória.)
    É este o propósito que dou à autorreflexão no que diz respeito ao amor: atingir clareza interna e, por consequência, uma certa paz emocional, um "estar em harmonia com os próprios sentimentos". Jamais um desencantamento afetivo, um ceticismo infértil que nos despe daquilo que mais nos faz humanos e vulneráveis.
​    Amar também faz parte da condição humana, incompleta. Sem a incompletude, não haveria amor, não haveria promessa de completude: o amor é o que nos move, o que nos faz acreditar na conexão emocional. O amor é o instrumento pelo qual acreditamos uns nos outros — e em nós mesmos. É o que nos dá a coragem de nos tornar aquilo que ainda não somos, de acreditar no potencial que nós e aqueles que amamos temos de ser bons e verdadeiros. Passamos a nos sentir preciosos em nossa vulnerabilidade. O amor constrói. Se não constrói, então me desculpem, mas não é amor. É outra coisa.

Este texto pertence ao livro Os vários eus que me habitam, um ensaio filosófico que se encontra em construção há mais de um ano.