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sexta-feira, 16 de junho de 2017

Desconhece a ti mesmo


    Dei tantas voltas em torno de mim mesmo que me vejo agora embrenhado no mais tragicômico dos paradoxos. Eu, que sempre fui ótimo com as palavras, que fui sempre o primeiro a ter algo a dizer sobre o quer que seja, e da maneira mais translúcida que eu podia, de repente me descobri incapaz de comunicar o que trago por dentro.
    Eu não sei. Acho que, em última instância, antecipo que as pessoas não serão capazes de me compreender; não por ter em mim questões de complexidade sobre-humana, mas pelo fato de estar fora de alcance dos outros conhecer e sentir as minhas verdades mais básicas, minhas verdades internas e esmiuçadas que dão liga ao que chamo de real. É como tentar explicar uma equação de segundo grau — que nem eu mesmo entenda muito bem — a alguém que não conhece as operações matemáticas mais simples. As minhas operações só eu conheço, e tentar responder a certos porquês é como tentar explicar axiomas. Por que dois mais dois é igual a quatro?
    Durante vinte anos, falei com a gana de ser compreendido. Agora, passei a me calar para não ser incompreendido. Eis o paradoxo. Pois ainda que eu possa, com as palavras, pintar quadros que retratem a minha realidade interna, com as mais fieis cores, a pintura tem sempre, e inevitavelmente, apenas duas dimensões. Falta uma dimensão interior que cada um encontra ou não dentro de si, a depender do quanto meus textos tocam o leitor em seu íntimo; e essa dimensão é necessariamente diferente da minha. Pois a minha dimensão interna é inacessível, e, em minha solitude absoluta, não é raro que eu me perca totalmente em mim; que eu me veja afogado por minhas próprias tormentas.
    Talvez eu sinta que esteja me faltando pessoas dispostas a ceder um pouco de sua profundidade para me compreender verdadeiramente, para me dar ouvidos atenciosos. Mas o fato é que não me falta; tenho alguns poucos amigos, este ano ainda mais, que sempre me surpreendem com sua sensibilidade à vida e a mim. O que acontece é que, mesmo com elas, não me sinto completamente confortável para falar sobre as minhas verdades. Por causa de todo o resto, de toda a parcela massiva e gigante de pessoas embrutecidas e desinteressadas, sinto ter perdido a esperança; sinto ser hoje incapaz de acreditar verdadeiramente que alguém se interessaria pelo que tenho a dizer sem uma dose pequena de cinismo, sem um leve fingimento para me agradar.
    As pessoas querem só falar, e eu não as culpo: descobri que eu também quero só falar. Quero — como sempre quis — saciar essa sede de mostrar ao mundo as flores que colho em meus jardins internos, para que elas não apodreçam. Mas como se resolve este impasse, em que continuo querendo falar, sem no entanto ter esperança de que conseguirei genuinamente? Porque mesmo com as poucas pessoas que estão dispostas a me ouvir de coração aberto não consigo, eu mesmo, me abrir. Parece falso. Toda tentativa de trazer para superfície o que tenho em meu núcleo é como tentar explicar as cores a uma pessoa cega.
    Por vezes, as descrições que dou casualmente a amigos quando me perguntam como estou emocionalmente até se aproximam um pouco da realidade, mas é algo tão simplificado e tão incompleto que soa artificial. Com os outros, eu me sinto inteiro artificial. É como se eu estivesse sempre representando um papel feito de partes de mim, e eu não aguento mais.
    Eu não aguento mais.
    É como se eu já não soubesse mais me ser. Porque se eu tiro todas as máscaras, não vejo rosto algum. Se tiro de mim o filho obediente, o amigo observador, o falador espirituoso... Se tiro o people-pleaser que gosta de todos e é por todos gostado, o que sobra?
    Sobra o meu silêncio. Sobra dor, sobram emoções que me consumiriam vivo, se eu permitisse. Ou sobra gelo, a alternativa a elas, que no entanto não é muito diferente de estar morto.
    Se antes eu me desesperava para ser compreendido, percebo agora que era porque no fundo sempre senti a incompreensão iminente. Não apenas lutava contra ela com todas as minhas forças, como a própria luta era de onde eu retirava minha energia vital. E agora? O que tenho? O que faço, tendo perdido as esperanças?
    É claro que a escrita me servirá de refúgio, como sempre me serviu; mas não consigo pedir a amigos que leiam meus escritos sem me sentir patético. Porque suplicar por atenção foi o que eu sempre fiz, e continuar fazendo-o mesmo após ter perdido as esperanças faz com que eu precise vestir novamente as máscaras, fingindo que me sinta compreensível. Emocionalmente — isto é, no mais profundo de mim, fora do alcance da razão —, não consigo acreditar que alguém possa realmente ter interesse sincero e autêntico em percorrer as minhas entranhas, pois ninguém há de me entender tão bem como eu. E se nem eu me entendo, que fazer?
    Talvez isto mude. É minha única luz no fim do túnel, na verdade: que isso mude, como as tantas outras crises temporárias, porém decisivas da vida. Pois me sinto drenado do que antes me movia; do que antes dava sentido à minha relação com as pessoas. E eu não gostaria de depender das plateias para poder viver. Existe escapatória? Entre viver uma vida artificial, para as pessoas, e uma vida solitária, no próprio silêncio de si?

Este texto pertence ao livro Calma Tormenta.

sábado, 10 de junho de 2017

Sozinhos, coletivamente


    A minha história com a solidão é muito estranha; absurda, quase; e, se pararmos para pensar, talvez mágica, até. É que durante a minha vida toda eu a evitei ao máximo. Ter crescido com acesso à internet me possibilitou nunca estar sozinho, e muito da minha desenvoltura social se deu graças a jogos de MMORPG (Massively multiplayer online role-playing game), isto é, mundos virtuais recheados de intensa interação entre jogadores reais. Se por um lado isso fez com que eu aprendesse a me dar muito bem com pessoas, tanto individualmente quanto em bandos — sobretudo para desviar do bullying, muito presente em meu ensino fundamental inteiro —, também criou em mim uma dependência muito grande.
    Foi então que, no início de meu florescimento intrapessoal, isto é, na época em que iniciei um processo doloroso de autopercepção e amadurecimento, no ano de 2016, notei esta dependência. Caminhando para o Restaurante Universitário, incomodado e até ofendido por nenhum de meus amigos ter aceitado ir jantar comigo, perguntei-me — como um soco em meu próprio estômago — por que diabos a minha própria presença, isolada, me era tão insuficiente. Por que instintivamente eu suplicava por companhia, por alguém para me tirar do tédio monstruoso que era ter apenas a mim mesmo? Esse desconforto abriu meus olhos para muitas outras coisas incrustradas em minha personalidade, para forças inconscientes que motivavam minhas ações de uma maneira constante e talvez até um pouco desesperada. Comecei a entender, por exemplo, por que eu era tão people-pleasing, isto é, por que tinha a necessidade compulsiva de agradar a todos, a todo instante — porque, tendo me pautado a vida toda pela subjetividade alheia, eu precisava que as pessoas me validassem, pois sua aprovação era a única coisa capaz de me tornar real. Por isso digo, no texto Cólera (um de meus textos mais sinceros e viscerais até hoje, diga-se de passagem), que o outro era a minha medida; pois era pelos outros que eu me pautava. Sozinho, não havia outro; sozinho, eu não era nada. Esta minha sensibilidade elevada à percepção do outro deixou de ser um dom e me fez carrasco de mim mesmo.
    Se com o tempo me livrei dos meus demônios, apenas por ser agora capaz de visualizá-los? De forma alguma. Mas aprendi a adestrá-los. Vez ou outra eles escapam da jaula e fazem a festa, alimentando minhas inseguranças e catalisando minha ansiedade social; porém, tenho aprendido a questionar sua força e esvaziá-los de poder. Foi assim que fui progressivamente tomando um caminho em direção a mim mesmo, ao ponto de meus amigos estranharem. “Régis, você está bem? Não, não é nada; é só que você está quieto demais.” No começo me incomodava que presumissem que o meu silêncio fosse sinal de tristeza, mas depois passei a achar um tanto fofo, embora levemente obtuso; significa que se preocupam comigo, e que notam quando estou com o grupo, e quando estou comigo mesmo. E se o contraste entre meus comportamentos é tão evidente, é justamente porque a vida toda nunca estive comigo mesmo; sempre estive tagarelando, tentando chamar atenção, citando fatos interessantes aqui e acolá, vivendo até onde me permitiam viver, com seus olhares (des)atentos.
    E quanto a estar com o grupo ou estar comigo mesmo, há pouco tempo pude saborear um paradoxo delicioso exatamente nesse sentido. Vocês não acreditariam na frequência com que estou num grupo de pessoas e me sinto profundamente deslocado — tanto por não partilhar do interesse pelo assunto discutido, quanto por ter plena ciência de que as demais pessoas também não se interessariam pela reflexões aleatórias que dançam em minha mente. Nesses momentos, enquanto observo vagamente as pessoas interagirem entre si, sem no entanto prestar muita atenção e ter atenção alguma voltada sobre mim, me sinto profundamente conectado comigo mesmo, da maneira mais confortável e genuína possível. Esse é o paradoxo ao qual me referi: ser justamente no seio das coletividades os momentos em que mais me aproximo de mim mesmo. Contudo, pensando bem, não é paradoxo algum; pelo contrário, faz muito sentido, já que é exatamente nas coletividades que surge sua antítese, o isolamento.
    Esse é apenas um dos inúmeros indícios de que não há nada mais ambíguo que a vida em sociedade. Não é à toa que muitas pessoas, a maioria delas, eu diria, vivem solitárias mesmo estando sempre rodeadas. Pois o medo da solidão impõe máscaras, e essas máscaras sociais abrem um abismo entre quem verdadeiramente somos e quem aparentamos ser. É, assim, justamente o medo da solidão que nos condena à maior das solidões: o isolamento dos outros e de si próprio.
    Foi só perdendo o medo de me sentir deslocado que pude finalmente aproveitar minha própria companhia e, assim, estar disposto a disfrutar da companhia alheia, nos momentos certos.

Este texto pertence ao livro Calma Tormenta.

sábado, 3 de junho de 2017

Palácio


    O palácio que sou eu, e nas paredes do qual estou confinado, embora seja externamente delimitável, visível a olho nu, tem em suas entranhas uma infinitude que cresce â medida que é explorada.
    Por fora, a divisão entre mim e o mundo possui precisão atômica; as paredes de meu palácio são biologicamente exatas, e entre o que chamo de “eu” e o que chamo de “outro” existe um abismo incontornável.
    Por dentro, guardo em mim um universo repleto de supernovas, de estrelas surgindo a partir do caos que me habita. Esta anti-matéria que constitui meu âmago subjetivo não comporta expectadores diretos, de forma que reste a mim duas opções apenas: ou digiro meu próprio caos, que é muito mais sublime e complexo do que às vezes posso suportar, e transmito a outros seres sua versão mastigada, reduzida e deformada, ou deixo-o trancafiado nos cantos mais obscuros de mim, vivendo, assim, na superfície.
    Tenho percebido que a vida toda escolhi a segunda alternativa, sempre de maneira passiva e irrefletida. Vivi na superfície para não me excluir da companhia daqueles que me cercam, para obter deles a validação intersubjetiva. Podei minha própria profundidade e complexidade em nome do direito de ser real, em nome do medo de uma existência sozinha e incompreendida.
    Já a primeira opção, a de mergulhar em minhas próprias questões e delas expelir algo novo, sublimado, é o que chamo de arte. Mas fazer arte não é tarefa leviana. Porque fazer arte de suas próprias entranhas, arte sincera e visceral, exige coragem. Exige uma coragem que tem me faltado nos últimos meses, em que tenho me alienado de mim mesmo e cedido à insegurança. Deixei que o sentimento de insuficiência, com vestes de preguiça e desinteresse, me tirasse a minha maior liberdade, que é a escrita. Pois cada vez que eu me afundava nos recônditos que me preenchem, eu me via inundado por uma complexidade maior que eu; uma complexidade que nunca exerci publicamente, que sempre deixei enterrada e adormecida, por não me oferecer reconhecimento, por me impossibilitar companhia. A cada tentativa de digerir meu caos, eu me via esmigalhado pela insuficiência, pelo fracasso antecipado que sequer me permitiria tentar o sucesso. Futuros que nem ao menos tiveram a chance de virar presente. E, incapaz de me recompor, de exercer as minhas potencialidades, eu me deixei ser imobilizado pela inércia cada vez mais, tornando-me refém de minha própria covardia. Impotência retroativa que se alimenta do turbilhão que agita as minhas galáxias internas, e que a todo instante me sequestra do agora.
    Por isso escrever me exige coragem: pois uma escrita de peito e alma não se constrange diante da expectativa de rejeição, não se censura pelas vaias de uma plateia silenciosa e incerta. Escrever é percorrer o meu íntimo e colocá-lo em palavras para o mundo, sem qualquer medo ou pudor, sem a preocupação asfixiante de ser incompreendido. Pois será justamente o receio de não ser habilidoso o suficiente para organizar e expor com beleza e completude o meu palácio o responsável por fazer com que eu próprio acabe me trancando para fora, junto a quem habita meus jardins externos.
    A única maneira de tocar verdadeiramente aqueles que me visitam, que têm em si seus próprios castelos e suas próprias masmorras, é abraçando sem medo as minhas supernovas e trazendo um pouco delas à luz, na escrita. “Canta a tua aldeia e serás universal.” A veracidade desta afirmação é minha única esperança de ter visitas: pois só não estarei sozinho dentro de meu próprio palácio se as pessoas, ao me ouvirem e ao me lerem, puderem, com isso, percorrer o interior de suas próprias paredes. A empatia é muito mais que um mero dever moral: é a única hipótese de não-solidão; de habitar o mundo em conjunto, de descobrir a parte de você que habita no outro. Só por meio da empatia se pode compreender o outro verdadeiramente, sem reduzi-lo à imagem rasa que se faz dele. Um mundo sem empatia é um mundo de pessoas que convivem solitárias, cada uma delas presa à sua própria bolha, cega e incomunicável.
    A comunicação profunda e verdadeira é a única forma de romper com a solidão da existência humana. Mas não se adentra outros palácios sem antes conhecer o seu próprio a fundo, sem saber qual é a ponte que liga o seu mundo aos dos outros. E aventurar-se por sua infinitude interior é algo que se pode fazer apenas sozinho, pois só você tem acesso à escuridão estocada dentro de si. Soa deliciosamente paradoxal: para romper com a solidão, é preciso antes fazer dela sua amiga; e, assim, desbravar a si mesmo sem medo do peso das próprias verdades, que, mesmo sem querer, você esconde tão bem de si mesmo. E então, se ainda assim quem estiver em seu jardim não for capaz de vislumbrar o que está dentro das janelas, de compreender o que e quem é você, aí ao menos você tentou — e tem a si mesmo para continuar explorando o próprio mistério que chama de eu.

Este texto pertence ao livro Calma Tormenta.