Rótulos e estigmas
Uma das mais ingênuas e equivocadas tendências intelectuais da pós-modernidade é a de rejeitar rótulos prontamente. Até certo ponto, faz um certo sentido: essa recusa automática é resultado da desilusão (epistemológica, talvez) gerada pela percepção de certos poderes que permeiam os discursos, comprometendo por completo sua objetividade. É algo com o qual temos um contato mais intenso na faculdade — ao menos nos cursos de humanas, nos quais o paradigma
foucaltiano já ultrapassou o positivista, embora infelizmente ainda não tenha chegado ao
habermasiano. Esta presunção de subjetividade contaminante foi tão importante nas ciências humanas que é hoje quase onipresente, atravessando os ambientes de pesquisa acadêmica para se apresentar até mesmo como premissa básica de qualquer discussão cotidiana.
Quando faço, com este texto, uma crítica à necessidade que as pessoas encontram de repelir instantaneamente os rótulos, é claro que não proponho sairmos da ponta de um extremo para irmos a outra. Aliás, nunca propus e provavelmente jamais irei propor algo desse teor, tanto por não acreditar em solução alguma que não tenha compromisso com o equilíbrio, quanto por enxergar nas ideias drásticas uma grande asneira passional. Seria uma enorme tolice abandonar o ceticismo estéril do pós-modernismo para voltar ao delírio positivista que acredita piamente em discursos despidos por inteiro de subjetividade; isso significaria não só uma insensatez quase religiosa, como também falta de estudar história.
Entretanto, desacreditar no ideal positivista não me impede de apontar os vícios lógicos de seu contraponto. O impulso pós-moderno mencionado, é, como já dito, ingênuo, pois está certamente revestido de boas intenções, mas profundamente equivocado,
por tratar como uma só coisa a classificação e o estigma por ela carregado. Ilustro com um exemplo concreto. Estes dias corrigi à mesa uma amiga que havia casualmente chamado outra pessoa de "neurótica". Expliquei que aquele comportamento estava mais para "paranoico", e que neurose era outra coisa. No mesmo instante, ela rebateu: "
Acho errado ficar classificando as pessoas, taxando elas disso ou daquilo. A ciência já fez muito isso pra exercer controle sobre as pessoas." Se por um lado ela fez uma avaliação histórica muito precisa da psicologia e da psiquiatria enquanto mecanismos de controle social, por outro, escancarou aos quatro ventos que confunde a doença com o hospedeiro. Explico.
O que minha amiga fez foi reprovar uma classificação patológica com conteúdo rigorosamente correto logo depois de utilizar e achar aceitável uma classificação patológica esvaziada de sentido. Em outras palavras, utilizou em primeiro lugar uma palavra que carregava apenas estigma (isto é, chamou alguém de "neurótico" apenas para lhe atribuir uma característica negativa), mas logo em seguida defendeu a própria hipocrisia condenando o uso de etiquetas psicológicas
por estarem carregadas de estigma. É uma inversão que rejeita o rótulo, mas condescende com a estigmatização em sua pureza.
É importante perceber que este episódio não foi fruto do acaso, uma grande ironia do destino ou coisa que o valha, mas, antes, um sintoma social do que costuma acontecer com as pessoas que incorporam certos preceitos sem digeri-los muito bem. Sabe-se que rótulos são ruins, mas não se questiona por quê. Eis que lhes digo: rótulos podem ser (e comumente são) danosos, mas não necessariamente o são. Muitas vezes, eles prestam uma finalidade com um alto potencial benéfico, se utilizados com cautela e seriedade; é o caso da psicologia, que pode identificar e tratar com maior facilidade e agilidade pessoas com patologias semelhantes. Outras vezes, sua importância está justamente em utilizá-los para subverter seu estigma. É o que acontece com a orientação sexual e o uso social que se dá às suas designações, sejam elas de baixo calão ou não.
Numa sociedade onde a homofobia está cristalizada nas bases sociais e familiares, a palavra "gay" traz uma grande carga negativa e é usada frequentemente como ofensa. Isso fez com que eu mesmo, na pré-adolescência, tivesse certa resistência ao adotar esta expressão como parte integrante de minha personalidade, pois cometia o mesmo erro de minha amiga: misturava o termo com seu estigma, fundindo-os numa coisa só. Em boa medida, isso também significava dar munição àqueles que utilizavam e ainda utilizam esta palavra como arma. E é por isso que me entristeço quando vejo, hoje, pessoas LGBT com um discurso quase moralizante que vê como solução a condenação completa das classificações: pois elas não percebem que o problema não é inerente aos rótulos, e sim à sua conotação depreciativa. Não percebem que, ao bradar violentamente contra o uso destas palavras, estão admitindo o poder delas sobre nós; um poder que se funda em aceitar implicitamente, por exemplo, que ser gay é algo
digno de vergonha, ou que ter comportamentos neuróticos é ser louco.
É nesse sentido que se faz necessário utilizar sim os rótulos, esvaziando-os de pejoratividade ou mesmo ressignificando-os. Não que isso seja fácil: a primeira alternativa exige um diálogo maduro com a sociedade, utilizando o constrangimento contra aqueles que pretendem constranger, enquanto a segunda opção requer que repensemos e reinventemos a entonação e o contexto aos quais submetemos essas palavras. Como tantas outras coisas nesta vida, apesar de ser uma atitude difícil, é também possível e necessária; quase urgente, eu diria. A primeira vez em que me dei conta disso foi quando ouvi as palavras de uma doce e lúcida senhorinha chamada Gabriela Leite, com quem aprendi que
temos que tomar as palavras pelos chifres. Nós devemos ter as rédeas da linguagem, jamais o contrário.