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quarta-feira, 4 de abril de 2018

Sexo, poder e consentimento


    Apesar de o tabu em torno do sexo ser hoje bem menor do que costumava ser anos atrás, não dá para dizer que a situação atual é ideal. Pouco se discute a respeito do assunto de maneira a não banalizá-lo ou mesmo usá-lo como matéria-prima para um humor não muito maduro. Ter aulas de educação sexual nas escolas estaduais é uma conquista muito importante de alguns estados, e que deve ser reconhecida, mas essas aulas são ambientes que não estão isentos dessa tendência (dos alunos, no caso) a banalizar e fazer comédia. E as conversas realmente sérias a respeito do sexo — como a clássica conversa na qual os pais têm um diálogo franco e desconfortável com os filhos —, por outro lado, acabam sendo envoltas numa aura excessivamente sóbria, como se tentasse contornar o tabu fingindo que ele não existisse.
    Precisamos falar sobre sexo. De forma lúcida, leve e consciente. A melhor forma de combater o tabu é tratar o tema da forma mais aberta possível, sem medo da diversidade e sem constrangimento. E, ao mesmo tempo, sem recair no erro de reduzir o sexo — e todo o erotismo que o envolve e que o constitui psicologicamente — ao mero ato carnal. Sexo é muito mais que isso. Em muitos sentidos, o ato carnal sexual é o que menos importa. Abordar as questões sexuais sem a complexidade, riqueza e fascínio que lhe são próprios seria ceder ao tabu e retirar do tema tudo o que o torna particularmente especial à espécie humana — e, mais, aos sujeitos que a compõem singularmente.
    Venho hoje falar sobre uma das coisas que, particularmente, acho mais pertinentes e valiosas que permeiam o erotismo e que, mesmo em aulas de educação se sexual, sequer se menciona: as relações de poder. Embora eu tenha desde já um certo alinhamento psicanalítico, não faço parte do grupo de pessoas (restrito, porém existente) que prega que todas as relações sexuais sejam totalmente baseadas em poder. Seria muita prepotência e ingenuidade fazer uma afirmação desse porte. Mas acho seguro e plausível afirmar que pelo menos a maior parte das relações sexuais (e das dinâmicas psíquicas que as tornam tão prazerosas e viscerais) são perpassadas por questões que envolvam poder, como dominação e submissão. De formas muito distintas, sim, mas sempre com algum cunho de entrega e vulnerabilidade. E embora hoje em dia sejam mais comuns e menos preconceituosas as discussões a respeito das práticas BDSM (que foram inclusive romantizadas por filmes de grande bilheteria, como 50 Tons de Cinza), acaba-se passando a falsa impressão de que essas relações de poder estão circunscritas a certos nichos underground, quando elas na verdade parecem fazer parte (em maior ou menor grau, e de maneiras muito diversas) da própria dinâmica afetivo-sexual humana.
    Constatar a amplitude e a pluralidade dessas dinâmicas de poder no erotismo acaba fazendo com que fique mais fácil nos desprendermos de certos moralismos que normalmente nos faria recriminar ou mesmo julgar certas práticas sexuais que são tidas como "desviantes". E o interessante é que, apesar de as discussões (dentro da academia e até mesmo da militância política) se embasarem em teóricos como Foucault, que desnudaram essas questões de maneiras muito profundas, estes ambientes muitas vezes acabam, sem perceber, recaindo em sua própria forma de moralismo (ideologicamente justificado) para condenar determinadas relações sexuais que envolvam poder, como se elas fossem algo em si prejudicial. Assim, em vez de dissolverem os moralismos que combatem, acabam se tornando moralistas inversos, por assim dizer. Por exemplo: em vez de dizerem às mulheres que elas podem fazer o que quiserem, acabam dizendo o que elas devem não fazer. Querem cercear a liberdade em nome da liberdade.
    Eu até entendo o argumento. Essas relações de poder, expressas na vontade e no desejo sexual dos sujeitos, são construídos culturalmente, e devem ser colocados em questão. Concordo. O problema é: o que se entende por colocar em questão? Sob a minha ótica, é tentar trazer à consciência (tanto histórica quanto individual) essas estruturas sociais nas quais nos inserimos para assim tentarmos, na medida do possível, obter uma clareza maior quanto às nossas próprias escolhas e atrações. Isso é muito diferente de "problematizar por problematizar", de se ancorar num desconstrutivismo estéril, que condena tudo e desumaniza o homem naquilo que o torna um ser desejante. O desejo não se curva à moral (embora até tente, nos neuróticos). Não importa se a moral seja, agora, "progressista". Ele continua reprimido em algum canto, gerando em nós pensamentos e atitudes que não queremos reconhecer como nossos.
    O que se confunde, essencialmente, é não saber exatamente como se delimita o consentimento. Costuma-se achar, muito equivocadamente, que ser submisso numa relação sexual de poder é estar num polo cuja vontade seja anulada. Muito pelo contrário, meus caros. É justamente o polo submisso da relação o detentor do consentimento-último, da decisão de se submeter ou não a determinadas práticas. No sexo — isto é, numa relação erótico-sexual entre duas ou mais pessoas que consentem —, as relações de poder não ofuscam nem anulam a necessidade de consentimento, mas, ao contrário, ampliam a importância de se produzir um ambiente saudável em que haja comunicação. Sexo sem consentimento não é sexo, é estupro. É uma violência extremamente grave, de cunho físico e sobretudo simbólico, que anula a voz do outro sobre seu próprio corpo. É algo inaceitável.
    A questão final parece ser, então, não permitir que as pessoas confundam relações de poder dentro do sexo — que podem, em alguns casos, simular uma submissão da vontade como parte fundamental da própria dinâmica erótica consentida — com um dos crimes mais graves contra a integridade humana. E embora pareça simples fazer esta distinção, em muitos casos a linha pode ser tênue. A pessoa que ocupa o polo submisso, quando se encontra também envolvida emocionalmente nessa posição, pode encontrar muita dificuldade em impor limites e se fazer ouvida. É nisso que as discussões verdadeiramente progressistas devem focar: em conscientizar as pessoas para que criem formas de reforçar a comunicação entre parceiros sexuais, não em demonizar práticas que lhe pareçam ideologicamente controversas. A linha é tênue, mas não deveria ser. Como diria uma caloura minha muito querida, "consentimento não é a ausência de não, mas a presença enfática e consciente de sim".