Meu tom de certeza
Tenho um apego por estar certo. Se estou sendo sincero, devo dizer que isto é algo extremamente evidente que, no entanto, só fui capaz de enxergar após muita autoanálise e muita humildade, como remédios amargos que insisti em tomar por saber que fazem bem. Mas não é algo do tipo “o importante é vencer a discussão”, pois, lembremos, eu me pauto pelo outro, o que significa que para mim é absolutamente impraticável um cenário no qual eu me imponha sobre o meu interlocutor de forma a ser visto como um vilão. É muito mais algo no sentido de “mostrar de maneira didática e simpática ao outro os motivos pelos quais eu acho que tenho razão”.
O problema é que esses motivos são sempre muito bem fundamentados e articulados — ainda que estejam equivocados ou enviesados, algo inteiramente possível. Tanto é que, quando apresentam algum argumento ou lógica mais contundentes que as minhas, eu não hesito nem por um segundo em ceder, com um ar resignado ou curioso (mas sempre de bom grado), admitindo que a outra pessoa tem razão.
Ultimamente tenho estado um tanto machucado por ouvir de amigos íntimos, na palavra dos quais eu coloco completa integridade, que eu sou intelectualmente autoritário. Porque eu cedo.
Eu cedo. Seria profundamente injusto dizer, só por causa do tom seguro e enfático das minhas palavras, que eu não cedo. Se tem uma coisa que eu faço, é ceder — não só quando reconheço que estou errado, o que é muito frequente, mas mesmo em situações em que continuo convencido das minhas razões, mas conformado diante do fato de que a outra pessoa não está disposta a entendê-las antes de contra-argumentá-las.
Mas eu entendo que esse tom possa inspirar uma arrogância, passando a impressão de que eu parto do pressuposto de que eu estou antecipadamente certo — uma postura que me incomoda e me ofende profundamente quando me deparo com ela em alguma pessoa. Já cheguei a concluir precipitadamente que esta é uma projeção minha, que eu só abomino esse tipo de pessoa porque na realidade é algo que eu tenho em mim e não aceito. E, para dizer bem a verdade, quando penso nesta hipótese projetiva, eu a sinto doer lá no fundo, o que me faz acreditar emocionalmente que ela é verdadeira. Mas, parando para pensar racionalmente, uma grande parte da minha concordância de que eu sou assim é, sem querer, uma forma de eu ceder às pessoas que me dizem isso, validando a sua visão sobre mim e internalizando-a em forma de culpa.
Não sei se o leitor conseguiu captar o traquejo que estou tentando mostrar que acontece: ao admitir essa culpa para mim, me culpando por algo que racionalmente eu sei que não faz tanto sentido assim, estou fazendo justamente aquilo que me acusam de não ser capaz de fazer: reconhecer a verdade do outro. O que é isso, minha gente? Reconhecer a verdade do outro é tudo o que eu sempre fiz na vida. É a raiz de toda a minha ansiedade social, de todo o meu sentimento de insuficiência. É um desaforo que verdadeiramente me dói ouvir do outro,que eu sou "intransigente": pois se eu de fato o fosse, isso sequer me doeria.
O que me vem à cabeça agora é que talvez eu seja, de fato, essa pessoa que me acusam ser, e que na realidade eu só estou me enganando com racionalizações. Esse autoquestionamento permanente, que resiste mesmo apesar de eu ter me convencido racionalmente de que eu não sou essa pessoa que me pintam ser, existe no mais profundo de mim: eu considero tanto a palavra do outro que eu não consigo me descontaminar dela, mesmo após eu tê-la batalhado dentro de mim. O outro sempre causou um estrago em mim; e é por isso que consigo entender que me machuque tanto essa crítica, pois é o outro dizendo que o meu defeito é não ouvi-lo.
É, aliás, talvez justamente porque atribuo à palavra do outro uma autoridade tão grande que eu tenho esta necessidade de me demonstrar certo — o que é totalmente diferente de ter a necessidade de estar certo, previamente, porque eu não tenho problema nenhum em estar errado, contanto que me convençam articuladamente. O que me ofende nessas pessoas que querem sempre estar certas não é que eu me veja nelas, mas, ao contrário, é me ver diante de um outro que quer impor suas verdades sobre mim mas não está minimamente disposto a ter, como eu tenho, uma permeabilidade às ideias do interlocutor. E me desculpem, amigos, mas se vocês me conhecem minimamente, sabem que eu sou a permeabilidade em pessoa. Eu sou inteiro permeável à subjetividade alheia, e, novamente, esse tem sido o meu maior problema há muito tempo.
Então, não: eu não aceito que me taxem como autoritário apenas porque meu tom de voz pode soar seguro demais. Porque muito mais autoritários são vocês, com tons passivos e inseguros, e que não se permitem convencer nem mesmo por argumentos muito bem explicados que contrariem as suas crenças confortáveis.
Não vou dizer que não tenho vieses, que minhas opiniões são sempre desapaixonadas a ponto de não haver resistência alguma a ideias novas, mas eu certamente não sou esse monstro que as suas próprias inseguranças fizeram de mim. Se bem que não os culpo. Também eu sou inseguro e projeto meus próprios demônios nas pessoas. Crio monstros onde não há e os combato a ferro e fogo, odiando aquilo que me machuca. É triste e patético, e quem mais se machuca ao fazer isso somos nós mesmos. Os meus monstros hoje são dois, sobretudo. O nome dela é L., e o dele, R.
L. é uma menina linda. Num certo sentido, não há meio termo: sua presença causa atração ou repulsão nas pessoas que a cercam. De si exala uma aura de adulta, não só com seus traços maduros mas também com sua expressão, que é toda cheia de um ar de exausta, sem paciência para as pessoas e muito menos para si mesma. Acho que isso dá grande parte do charme (pois o que ela mais tem é charme): essa constante postura de quem está tão cansada da vida que já parou de fazer questão. O ponto é que, olhando-a mais atentamente, num nível um pouco mais profundo do que as pessoas costumam procurar, é muito nítido que essa pose toda é provavelmente uma roupa que ela aprendeu a vestir para não se deixar fragilizar. Essa é a sua forma de não se vulnerabilizar.
Mas chega uma hora que cansa — e eu diria que cansa imediatamente, assim que se percebe qual é a dela. Quando se percebe que essa indiferença toda, esse sarcasmo pretensamente humilde e esse ar desdenhoso em relação às coisas da vida, às pessoas e a si mesma — quando se percebe que tudo isso não passa de uma fachada, uma defesa que ela está viciada em usar, e sem a qual não consegue se relacionar, a pessoa se cansa. E aí aquela elegância toda, aquele brilho que ainda seduz muitas pessoas, se transforma de repente em algo triste. Uma pessoa que não consegue se demonstrar vulnerável em público, e que, em vez disso, veste uma máscara de quem incondicionalmente sabe o que fala — mesmo quando, na maior parte dos momentos, esteja falando coisas das quais não tem a menor propriedade. Sua situação passa de triste, então, para um tanto nociva.
Acho que, sob um certo ângulo, a forma de L. lidar com as discordâncias é quase oposta à minha. Como conversar com alguém que possui o tempo todo um tom de voz desapegado e cético (no sentido da desesperança, do pessimismo como pressuposto), e que, no entanto, jamais cede? Pois justamente por sentir que não domina o assunto, veste uma carcaça de quem domina, e se deixa embrenhar nessa apresentação confusa de segurança e insegurança excessivas na voz.
Quanto ao R., minha repulsa é ainda maior. Pois a sua gana por estar certo não é triste, mas irritante — no máximo que alguém consegue ser. A questão é que ele, ao contrário de L., domina até excessivamente o que está falando, e tem argumentos bastante lógicos e articulados. O que me irrita e me ofende profundamente é que a sua vontade de se demonstrar correto é tão sedenta e tão voraz que ela me atropela. R. também não cede, mas porque usa da solidez de seus argumentos para não precisar escutar o que o outro tem a dizer. Se escuta, parece ser sempre com o objetivo primordial de desmontar o argumento do outro de uma maneira complexa e intelectual, ou, no mínimo, compatibilizá-lo ao seu.
Eu, que só o conhecia virtualmente, era um grande fã. Até que tentei conversar com ele pessoalmente, ouvindo suas opiniões complexas e dialogando com elas — foi então que percebi que seus olhos divagavam e sua mente fugia do ambiente quando era o momento de tentar assimilar os meus argumentos. E naquele momento eu me senti profundamente invisível, como se o único papel possível que eu poderia ter para ele era o de ceder à erudição e exatidão de seus argumentos, sem intervir com a minha própria subjetividade.
E o interessante é que, pelo que conversei com outras pessoas que o conhecem, embora ele tenha uma reputação um tanto manchada por ser uma pessoa que problematiza demais as coisas, e com uma dedicação combativa intensa demais, chegando a parecer talvez até um pouco rancorosa, poucos são aqueles que se incomodam e que sequer notam esta sua tendência a não ouvir. E eu consigo entender o porquê. A forma didática como se comunica passa a impressão — não por coincidência — de que ele está ouvindo seu interlocutor, quando na realidade tudo o que faz é utilizar o discurso que chega até ele como uma ponte para a construção do seu próprio. Ele não está minimamente disposto a ceder.
O único lado bom deste incômodo que R. me causa tão ferozmente é ter me feito descobrir que me é extremamente doloroso ser contrariado por pessoas que não estão abertas ao que eu tenho a dizer. Eu me sinto invalidado. Mais do que isso, até: anulado. Porque, repetindo pela trigésima vez, eu infelizmente aprendi a me ver por meio dos olhos do outro. E isso é algo que eu tenho trabalhado muito em análise.
Ainda preciso descobrir até que ponto esta minha aversão a essas duas pessoas é fruto das minhas inseguranças e projeções, e até que ponto eles de fato têm posturas tão tóxicas quanto me parecem ter. O fato de eu estar usando apenas suas iniciais me alivia bastante, pois me deixa totalmente confortável para não me censurar em nome da privacidade psicológica alheia. O que me deixa entusiasmado é imaginar se o leitor que é amigo deles será capaz de identificá-los mesmo sem eu ter escrito seus nomes, o que significaria não apenas uma precisão descritiva minha, mas também uma certa acurácia em sua toxidade. Ou, melhor ainda, se eles próprios estiverem lendo isso, e diante da identificação com o descrito, serem obrigados a se deparar com o fato de que "a carapuça serviu".
Este texto pertence ao livro Calma Tormenta.